Primeiro acto:
A lamacenta queda. Não a lamacenta aterragem - é a queda que é suja, húmida e pegajosa.
Começa limpa, no tropeço da vida, mas imediatamente se suja no ar. Repleta de resquícios de formas indefinidas, salganhada amontoada, bolos disformes de matérias anónimas. Vai-se enchendo no movimento imprevisível mas obediente à gravidade.
Há dois tempos separados, o de quem vê e o de quem cái.
A lamaçenta queda, para quem vê, é rápida e barulhenta. Foi um "Truz!" momentâneo cuja velocidade não permitiu a gravação mental de pormenores inequívocos. Caberá ao cérebro de quem viu colmatar falhas visuais com pedaços dispersos de outros acontecimentos fortuitos e longíquos que agora servirão para complementar este, sem distinção das suas origens. Tanto pior para o individuo que tentar contar a sua versão ao outro individuo cujo acaso também lhe permitiu a assistência do mesmo acontecimento.
A lamacenta queda, para quem cái, é lenta e silenciosa. Há um "Truz!" no final, mas é desfasado do acontecimento e longíquo dele. Para quem cái, a lamacenta queda traduz o significado de eternidade, mas só por um bocadinho que dura muito. Dura o suficiente para a percepção tomar-se conta de todos os detalhes e pormenores - o movimento descontrolado do corpo, a sujidade que se lhe junta e cobre, as formas que toma na vertigem da queda desamparada na reflexa deslocação que se lhe imprime. Dura também o suficiente para que o individuo reveja mentalmente as circunstâncias que o trouxeram a este sujo desamparo, vistas de vários pontos terrestres e agrestes diferentes.
Segundo acto:
A nobre aterragem. Não é o nobre levantar - é a aterragem que é nobre, cheia de verticalidade.
O final da lamacenta queda é pontuada por um "Truz!", ponto final parágrafo de um momento, barra travessão do momento seguinte. A aterragem horizontal faz-se na verticalidade da situação - a possível, entenda-se. O indivíduo que cái teve tempo reflexivo e reflectivo suficiente para se aperceber da situação, das suas causas, das suas várias possíveis consequências segundo plano probabilístico desenhado pelo modelo matemático da hipergeométrica distribuição. Teve tempo para ponderar a dimensão da amostra e registar os casos de sucesso conhecidos dentro dessa amostra. Derivado destes factores, consegue transformar a sua aterragem desajeitada num momento de nobreza e honra. Para fazê-lo, cairá TO-TAL-MEN-TE desamparado e descordenado, sem qualquer tentativa de colocar as mãos à frente da cara ou de proteger a cabeça. De facto, a nobreza da aterragem dependerá também do momento de contacto das mãos e dos joelhos com o solo. Quanto mais nobre, mais tarde será esse contacto.
Terceiro acto:
O a-levantar-se. Não é o levantar-se - é o a-levantar-se.
O levantar-se seria digno e comandado pelas necessidades e possibilidades motoras do indivíduo. O a-levantar-se exige mais do que isso, exige ao individuo que se alevante como possa. Se puder. Se não puder, será na mesma considerado como se tendo alevantado. Para todos os efeitos, o domínio da percepção sobre os acontecimentos fortuitos imprime na objectividade visionária a incapacidade separativa da realidade objectiva tatuada na pele da ilusão casualística.
A banda sonora dos três actos será contínua e seguirá o seguinte modelo:
plóc-fzzzzzzzzzzzzzzzzzzztttt-Truz!
Fim.
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