segunda-feira, junho 01, 2015

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Nasceu com um bloqueio no coração, sabes? Ao principio ninguém deu conta, era só um bebe que sorria pouco mas com o tempo aprendeu as alturas em que devia sorrir. Os momentos para o sorriso. E o bloqueio foi passando despercebido, tornou-se pior na adolescência, pelo menos acho que ela começou a suspeitar de alguma coisa diferente, quando lia poesia e se prendia nas métricas ou quando as amigas sussurravam em histéricos risinhos o nome do rapazinho que lhes corava as bochechas. Aprendeu a fazer parecido, a conhecer os momentos certos para este ou aquele suspiro, imitava na perfeição a vergonha mal disfarçada mas nunca conseguiu que as bochechas se lhe corassem. Também não chegou a ser preciso, nunca houve observador tao atento que lhe estranhasse a falta desse sinal quando os outros abundavam. Nem toda a gente cora, diria se lhe perguntassem, nem toda a gente chora, também haveria dito se lhe perguntassem mas ainda bem que nao perguntaram porque se calhar esta afirmação levantaria maior estranheza.

Nasceu com um bloqueio no coração, sabes? Acho que nunca ninguém deu conta mas ela sabia que havia algo de pouco natural na forma como antecipava os momentos para falar ou calar, na mestria como mostrava a reacção certa, no momento certo, quase como ensaiado. Não fazia colecções de muitas coisas, apenas de sinais disto ou daquilo. Caminhos lógicos para chegar a conclusões emocionais, decisões ponderadas para demonstrar impulsividade, surpresa ensaiada para não defraudar expectativas e alguns silêncios escondidos nas quatro paredes de sua casa para quando se cansava dos teatros dos dias.


Não sei se alguma vez foi realmente feliz. Quer dizer, sei que gostava de algumas coisas, gostava de andar de bicicleta rua abaixo, especialmente no final do verão quando acabavam de por asfalto novo que nunca durava ate ao ano seguinte. Gostava do cinema ao ar livre nas noites quentes, que a câmara montava no jardim. Eram poucos os momentos em que os olhos brilhavam mas suponho que mesmo com um bloqueio no coração possas sentir o vento na cara ou sonhar em ser outra coisa qualquer. 

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