A gente habitua-se, desde criança, a dizer "obrigado" e "se faz favor". A não gritar, a ser bem comportado, a dar beijinho ordeiramente depois de nos mandarem, mesmo sem conhecermos aquela cara de lado nenhum. A gente habitua-se, a cumprir as expectativas que nos depositam e que não escolhemos. A gente habitua-se a fazer letra redondinha e a decorar matérias que não percebemos na escola, sem saber para que servem.
A gente habitua-se à ideia de ter que escolher qualquer coisa "para ser" na vida, e escolhemos e continuamos a cumprir as expectativas da nota X no exame Y, do estágio A no sítio B. A gente habitua-se, a passar de estágio para estágio, a viver com menos de 1000 euros no bolso, a sonhar com um contrato, geração rasca, geração à rasca.
A gente habitua-se a estar fechado 10 horas por dia em sítios que não são as nossas casas, com pessoas que nos obrigaram a conhecer, a fazer tarefas que não escolhemos, a ver o sol e o vento passar do lado de fora da janela.
A gente habitua-se a perder o verde das árvores, a não sentir o cheiro de terra molhada, a ver o horizonte largo que acaba na vista do prédio da frente. No trabalho e em casa.
A gente habitua-se às relações que temos, aos amigos que temos, às desilusões que sofremos, "a vida é assim" dizemos, enquanto nos habituamos a que seja outra vez assim.
A gente habitua-se a sair do trabalho e a almoçar em pé e sozinho, no meio de estranhos que evitamos olhar nos olhos, que evitam olhar-nos nos olhos. E a gente habitua-se a sair do trabalho e a irmos para casa, comer qualquer coisa em frente à tv e a sentir o serão passar, para no dia seguinte acordar e espreitar mais uma fila de trânsito, mais uns atrasos, mais o sol a passar na janela.
A gente habitua-se a que o amor se gaste, a gente habitua-se a que as conversas acabem, a gente habitua-se aos tópicos práticos e funcionais e aos silêncios que já não traduzem o conforto e a cumplicidade entre duas pessoas. Significam outra coisa qualquer, mas a gente habitua-se a eles também.
A gente habitua-se à vida e a tudo o que não gostamos na vida. Para não lutarmos por coisas perdidas, porque olhamos à volta e vemos gente habituada, para não nos desgastarmos deixamos que a vida se gaste sem que a gente faça outra coisa nela senão habituarmo-nos.
Terá mesmo que ser assim?
(li um texto parecido com isto em algum sítio, não me lembro onde, não me lembro de quem, sei que não me sai da cabeça há uns dias e acabei por ir escrevendo, parecido, igual, diferente, não sei. não é cópia, não é plágio, também não é ideia original minha, confessadamente.)
5 comentários:
mas é muito bom! Vi-me e revi-me!
Do not go gentle into that good night,
Old age should burn and rave at close of day;
Rage, rage against the dying of the light.
Though wise men at their end know dark is right,
Because their words had forked no lightning they
Do not go gentle into that good night.
Good men, the last wave by, crying how bright
Their frail deeds might have danced in a green bay,
Rage, rage against the dying of the light.
Wild men who caught and sang the sun in flight,
And learn, too late, they grieved it on its way,
Do not go gentle into that good night.
Grave men, near death, who see with blinding sight
Blind eyes could blaze like meteors and be gay,
Rage, rage against the dying of the light.
And you, my father, there on the sad height,
Curse, bless, me now with your fierce tears, I pray.
Do not go gentle into that good night.
Rage, rage against the dying of the light.
-- Dylan Thomas
Pois sim... mas nao deixa de ser um habituar que é opçao nossa. E pode ser um habituar menor se nas pequenas coisas vais contra as regras...
Podemos sempre procurar pôr a cabeça de fora da janela e sentir o sol na cara e o vento no cabelo.
Podemos sempre procurar os olhos das pessoas que nos rodeiam.
Podemos sempre lutar pelo que queremos, mesmo que subtilmente... depois de descobrirmos o que queremos.
Gosto muito de ti, e mesmo que a nossa cumplicidade seja mutável, existe sempre, e espero que contes com ela.
Podemos sempre ter a opçao. Basta procurar.
Mesmo com dias mais desesperados, em que nao vemos para lá do prédio da frente. Aí proponho trazer uns binóculos no dia seguinte e olhar p dentro do prédio por exemplo.
A gente também se habitua a que toda a gente queira que nos habituemos a essa merda toda, a que toda a gente nos ache uns otários por não nos habituarmos.
Então e se a certa altura nos habituarmos a aturar tudo e todos? Poderíamos ser protagonistas de uma fuga gloriosa, e como no alto de uma contagem de montanha, deixar o pelotão de habituados para trás com os seus hábitos de escravos e seguirmos a impar do esforço mas começando a ganhar o hábito de andar de cabeça erguida.
Com alguma sorte, talvez alguém empreenda uma perseguição à nossa fuga solitária e, ao sermos apanhados, colabore para uma glória final partilhada.
Se porém claudicarmos, se “o papel romper e o dedo no cu meter”, restar-nos-há seguir o rego feio e mal cheiroso de um palerma qualquer até ao fim.
com alguma sorte, com alguma sorte, talvez alguém... seria bom não claudicar assim. "Nem sentado, nem deitado nem em pé".
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