Levantou-se da cama, e ainda era a noite o que vestia aquilo que viria a ser o dia, lá fora. Ainda era noite, mas não era tempo. As madrugadas têm uma luz inesperada, de quem se sabe ser a inexistência do tempo. Só espaço, e quando se levantou da cama, todo o espaço era dela. Não o do mundo, o outro espaço, fora do mundo, mais longe que o horizonte.
Ouviu no vento que batia na janela o seu nome. Não estranhou, conhecia o apelo. Dois passos, mão no puxador, um clique. O vidro frio saiu-lhe da frente e o bairro que conhecia desenrolou-se-lhe aos pés descalços. Como é diferente esta terra, nas madrugadas, pensou. Ou será que é diferente esta terra, nos dias com máscaras coladas? Não se debateu muito sobre a questão, não tinha pressa mas segurava urgências. Abriu os braços e tirou os pés do chão, levantou voo pela madrugada dentro, de mãos dadas com o vento que a chamava, de olhos abertos para uma terra iluminada pela luz prata da lua. Passou por cima do seu bairro, passou por cima da sua cidade, olhou os becos escuros, uma ou outra pessoa que passava sem reparar na sombra dela reflectida no chão. Passou por cima dos rios e das pontes, viu alguns carros solitários nas auto-estradas, sorriu-se para a lua e fez festas às nuvens.
O mundo - o mundo que achava que ela lhe pertencia - sonhava inteiro, só ela estava acordada no céu das rimas arritmadas.
Quando o sol começou a querer ameaçar nascer, soube que já era hora de o mundo voltar a ter horas, o regresso ao seu quarto impunha-se, a volta à sua cama era um imperativo. Não queria ser descoberta, olhada de soslaio como a louca que passava as madrugadas a voar. Entrou pela mesma janela por onde havia saído, correu o vidro e puxou o trinco. Deitou-se na cama e fechou os olhos. Era agora a altura dela sonhar, sonhar que se levantava e tinha um trabalho, sonhar que tinha obrigações e responsabilidades, sonhar que tinha preocupações e amizades. Mais logo acordaria de novo e poderia voltar a voar, sem ninguém ver, sem ninguém suspeitar.
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