Corria o ano de 2004 e lembro-me de dona Perpétua que não corria para lado nenhum. Corríamos também nós, atrás de uma bola chutada com força a mais, à frente de um cão vadio que nos acompanhava por um dia, debaixo de um sol que nascia tarde demais para a nossa excitação de aproveitar até ao tutano todas aquelas férias de verão na vila.
D. Perpétua não corria, mas tinha por norma um passo apressado quando passava por nós. Mas parava-se, quando eu lhe falava, e eu falava-lhe mais por simpatia do que por educação, tenho que confessar. Gostava de dona Perpétua, que morava na casa abaixo da dos meus avós e ás vezes me convidava a entrar para uma queijada-quentinha-acabada-de-fazer. Enquanto a trincava com gosto, demorava-me a olhar para as coisas na sala, tinha muitas coisas, a sala de dona Perpétua. Mais de 500 molduras com fotos de caras que eu não conhecia, dizia 500 mas a noção de 500 na cabeça de uma criança são apenas muitas e não verdadeiramente 500. Mais do que as que eu sabia contar: 500. Eram fáceis as contas naquela altura, e era fácil saber que também eram mais de 500 as caixinhas de loiça de dona Perpétua. Umas até tinham coisas dentro, botões de casacos que já não existiam, papéis de contas já saldadas, bilhetes de coisas que já tinha visto, sei lá que mais. Dona Perpétua não me deixava abrir as caixinhas porque eu tinha as mãos sujas de queijadas e podia partir alguma, então ela às vezes abria umas para eu ver.
Que eram recordações, explicava-me, e eu também gostava dela por aquele sorriso triste que ela fazia quando o dizia. Ou quando falava dos filhos, estão lá na capital grande, dizia, e são senhores importantes, e sorria, um sorriso diferente de quando o Júlio marcava um penalti, ou quando o Pedro descobria mais um ninho com passarinhos lá dentro.
Dona Perpétua dizia que não sabia quando era a próxima vez que ia ver os filhos importantes. Eu estranhava, será que a minha mãe também conhece outros meninos que nunca me viram? Se calhar dona Perpétua vai buscar os filhos no intervalo da escola, só que eu é que só cá estou nas férias, pensava. Mas estranhava que ela não soubesse quando acabavam as aulas, a minha mãe sabia. Mas não ligava muito, "e aquela? o que tem?" apontava para outra caixinha, uma agulha com uma linha branca, dona Perpétua já não se lembrava que bainha ou remendo teria servido.
"Sabes, eles crescem e vão-se embora de casa, é assim a vida" dizia-me, e eu percebia, que eu também já era crescido e tinha saído de casa logo de manhãzinha para vir jogar à bola.
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