terça-feira, julho 26, 2011

Às vezes, só às vezes, deixas o tempo escorregar-te no corpo para te lembrares das histórias que já não existem. Como as de umas mãos muito velhas que te davam umas palmadas desajeitadas no cimo da cabeça e tinham marcadas nas palmas as histórias incontáveis da vida, em vez de linhas sobre o futuro e promessas escondidas.

As mãos - todos os erros, todos os sucessos, todas as desistências e os momentos inesperados que tentaram agarrar, os outros que largaram, as vezes que tocaram em coisas, objectos, outras pessoas e depois se esqueceram dessas formas, dessas temperaturas, dessas densidades. Para se lembrarem de outras.

Ás vezes também me lembro de coisas. Lembro-me que esta cidade cheia de luz não é de verdade terra de ninguém. Se alguém lhe pertencer serão os pombos, não as pessoas que a cruzam e a (re)conhecem. Porque as pessoas que a cruzam apenas conhecem os sítios que são pisados todos os dias por centenas de milhares de pés apressados, mudos, pés que não reparam nos sítios porque os lugares não são deles e mudam um bocadinho, todos os dias, sozinhos, sem ninguém que se aperceba de uma erva a florir entre a calçada ou mais um pedaço de madeira que apodrece porque estes lugares não são de ninguém.

O outro dia disseram-me que as coisas são de quem trata delas, que essa é a única pertença possível (e mesmo assim não chega).

Quase todos os dias sabes o que deves fazer, quando acordas de manhã e o dia se espreguiça à tua frente e na tua cabeça as vozes de recomendações, exigências, responsabilidades e planos. Para chegar a algum sítio, para fazer o que deves fazer, porque é assim. Porque a vida às vezes não nos guarda tempo para aquilo que gostamos e é assim que o tempo se nos escorre pelo corpo numa cidade que não é de ninguém e sem mãos que guardem as histórias e memórias que o tempo apagou.

Não quero deslargar as pequenas histórias cruzadas que não se vão tornar no elenco principal. Porque acho que essas é que são o principal, sem os deveres e responsabilidades e pressupostos com alguém a dizer-me "não faças isso que o caminho é por ali" e esse caminho é aquele onde a vida não nos guarda tempo para as coisas que queremos mais (que queríamos mais, quando as mãos forem velhas e tiverem traçados os erros e segredos incontáveis).

quarta-feira, julho 20, 2011

NOTICIA DE ÚLTIMA HORA: Mãe entra na cozinha depois de ausência de mais de 30 anos!

Após a tentativa falhada de confecção de um bacalhau com natas, a gastronomicamente insensível foi apanhada a tentar remediar o prato que, momentos antes, fora dado a provar a Joana, a filha mais nova. (os nomes utilizados nesta reportagem são fictícios e qualquer semelhança com uma realidade perto de si é puramente acidental) .



Joana, sempre se mostrou condescendente com os "dotes" culinários da sua mãe adoptando sempre uma postura de encorajamento, fruto do seu incomensurável amor filial. Chegou mesmo “a oferecer-lhe um O Livro do Pantagruel para guiá-la nos momentos de escuridão culinária”, conta com um sorriso triste nos lábios. A sua mãe, no entanto, nunca abriu o livro e decidiu aventurar-se no novo e inexplorado mundo da culinária.

José seu marido, conta-nos como tentou evitar o sucedido “Eu vi logo que ia sair dali disparate. Quando a minha mulher põe uma ideia nova na cabeça o melhor a fazer é afastarmo-nos. Eu e a minha filha mais velha não arriscámos e comemos bifes grelhados com ovo a cavalo, mas a Joana não quis ouvir-nos…

Mais para agradar a sua mãe do que por vontade de se submeter a tal provação Joana terá consentido no uso do seu paladar a fim de aferir a qualidade do prato. O testemunho de dor partilhado com o nosso repórter ilustram bem os momentos de terror passados por esta flha que reconhece agora a má opção de ter rejeitado o bife grelhado confeccionado pelo seu pai.


Horror, angústia e desepero foram as palavras escolhidas pela vítima para descrever a experiência: “O meu mundo, tal como o conhecia, desmoronou-se à minha volta no momento em que dei a primeira garfada. A minha mente foi invadida por imagens flash das minhas vivências passadas: recordei a minha infância, os meus pais a jogarem comigo ao peão e um dia de sol na praia.

Com o olhar vago e os braços envolvendo fortemente o seu corpo Joana, leva-nos friamente a reviver os momentos abaladores de que foi vitíma: “A violência do primeiro contacto da pasta seca e farelenta com as papilas fungiformes despoletaram uma dor lacinante que percorreu cada centimetro do meu corpo. Senti o subtil sabor do bacalhau tentar vencer e impôr-se diante da quantidade desproporcional de batata – esmigalhada ao acaso e sem arte ”.

Desproporcional foi também o polvilhamento do pão ralado que dava ao prato um aspecto assustadoramente semelhante à cabeleira do Mick Jagger. Quase como se o cantor tivesse decidido cortar o cabelo e atirá-lo para dentro de um pirex. “Numa tentativa de esconder o que estava a sentir comecei a mastigar mais depressa para pôr termo ao meu sofrimento. Sei agora que só piorei as coisas...”. Segundo apurámos junto do Dr. Mimoso da Silva, abalizado nutricionista: “A mastigação rápida faz libertar todos os aromas e odores contidos nos alimentos exponenciando o seu sabor aos níveis máximos”.

Infelizmente a experiência não terminava ali e o preparado iniciou a sua descida em direcção ao estômago a um ritmo “morbidamente lento” para utilizar palavras de Joana. “Era como se os sucos gástricos do meu estômago estivessem conscientes do marasmo gastronómico que acabara de se instalar no meu estômago e se tivessem recusado a actuar, assim como uma greve gástrica….”

Felizmente a história de Joana tem um final feliz. Ao fim de seis longas horas de digestão de apenas 4 gr de bolo alimentar Joana conseguiu vencer a estupro alimentício de que foi alvo e o seu estado clínico é, agora, estável.

Até ao fecho da edição pudémos confirmar junto de amigos próximos da familia que o alimento se encontra agora perto do recto onde será finalmente expelido do corpo. A relação entre Joana e sua mãe também foi reatada, não sem a promessa por parte desta última de não mais entrar ou aproximar-se de uma cozinha enquanto a sua condição de culinariamente toldada permanecer.

sábado, julho 09, 2011

Assunto a explorar

Nunca o próprio ser conseguirá passar a
Fronteira entre as coisas como elas são e como nós as sentimos.