segunda-feira, agosto 22, 2022

destroços

Lá fora o mundo arde, desenhando trilhos negros que assinalarão por anos os caminhos dos sopros emocionais de Zéfiro. Cá dentro o fogo é lento, carbonizando desejos e vontades que ficarão latejando em silêncio por uma vida inteira. Pelo que resta de uma vida que já foi inteira. O desnorte é enorme e a bússola rodopia furiosamente entre todos os pontos cardeais - quer o ambiente seja de festa, quer seja de dança, quer seja uma conversa apaziguada e até no silêncio do finalmente só. Não pára o desassossego, não diminui a velocidade. Talvez quando não reste verde na paisagem, a esperança possa passar de brasa laranja a cinzento pó. Se tudo for destroço, se a agulha perder o equilíbrio no eixo, se o magnetismo dos pólos mudar devido às temperaturas pós-incêndio - então os caminhos ficarão cobertos de cinza e a bússola acabará por se desintegrar, entregue a outro sopro de vento.




picture from here.

segunda-feira, setembro 06, 2021

neste momento

 Neste momento, algures no mundo, alguém põe o pé descalço na areia de uma qualquer praia e respira em direção ao horizonte.

Alguém troca a fralda suja de um bébé, enchendo-o de beijinhos sonoros na barriga,

alguém acaba de escolher finalmente que livro levar e prepara-se para ir para a caixa.

Não sei de estatísticas, mas talvez duas pessoas tenham acabado de fazer match no tinder,

alguém abre uma cerveja para pôr um ponto final num dia cansado,

alguém abre a porta do carro em jeito cavalheiramente sorridente sem dizer que já estamos atrasados para o jantar,

alguma mãe irritada deixa escapar um grito de zanga e a sua criança se põe em sentido, já devido há algumas horas,

um escritor que não se intitula assim olha para uma folha em branco no computador sem saber muito bem como começar enquanto um pastor conta as cabeças do rebanho para estar certo que não lhe falta nenhuma.

em algum lugar sem assistência haverá uma folha seca que se desloca pelo vento do pé da raiz-mãe para uns metros mais à frente, será abrigo de um qualquer insecto desconhecido por esta noite,

alguém olha pela janela e suspira por outro alguém que não está por perto,

uma criança aprende que se pedir um desejo à primeira estrela da noite, ele talvez se concretize. Agora só falta saber o que quer desejar.

quinta-feira, abril 22, 2021

Dona Léria

Dona Léria

trazia

na voz 

a calma de um lago primaveril.

Dona Léria

pestanejava 

com 

todo o tempo do mundo.

Um pestanejar

podia durar

todo um segundo.

Não guardava urgências - nem nas pregas da roupa, nem em lado algum.

Sacudia-as

com um respirar pausado,

afastava-as

com um manejar bailado.

Dona Léria embrulhava-se em tranquilidade, não tinha problemas com o silêncio - o que às vezes deixava as pessoas à volta confusas, desconcertadas. Que vinham com partes de histórias e voltavam totalmente desarrumadas. Dona Léria criava assim desarrumações pessoais, 

e gostava.

terça-feira, março 30, 2021

Shhh, deixa-te estar sossegado mais um bocado

Shhh, deixa-te estar sossegado mais um bocado,
deixa-te ficar nestas quatro paredes onde aprendeste a distinguir cada nova mancha,
onde aprendeste a ler as horas do dia nas danças dos raios e sombras na madeira do chão,
na tinta da parede,
sobre os móveis e plantas sobreviventes.

Deixa-te ficar sossegado mais um bocado,
deixa-te ficar nestas quatro paredes enquanto te comes um mundo virtual, apimentado por uma nova qualquer experiência culinária, a tentar que os dias saibam diferentes, a saber que os dias te sabem diferente.

O mundo, lá fora, parou. Parou por um momento só,
depois continuou vibrante mas sem ti. Não lhes fazemos falta nas manifestações,
nas tentativas de revoluções,
nas vozes irritadas contra os invisíveis,
nos disparos sobre Moçambique,
nos empurrões a um barco encalhado que afunda também uma economia. A global. A que já estava afundada mesmo.

Daqui a nada há-de ser diferente,
daqui a nada vamos para a rua dançar,
daqui a nada voltamos aos abraços,
aos brindes e conversas cruzadas.
Daqui a nada há uma vacina, ou duas ou três ou vinte, as que sobrarem de países mais ricos,
talvez venham cá parar e possa ser diferente. Do agora, do que foi.

Pudéssemos nós reinventar o que nunca se viu, uma vez mais, mas agora com as rédeas nas mãos. Será que podemos?

quinta-feira, janeiro 03, 2019

3 de Janeiro de 2019,
os primeiros três dias de um ano novo a estrear. De mais um ano a estrear, para já ainda tão parecido com o ano passado.
Faz hoje três anos que a avó morreu e ainda nunca escrevi sobre isso,
ainda não será hoje;
Hoje que está frio, hoje a quem falta uma hora para acabar.
Dão muito frio para esta semana, tanta coisa que podiam dar e dão frio, ah!, e também dão um eclipse lunar total. Está previsto atingir o seu auge algures pelas cinco da manhã; não creio que o vá ver, a vida moderna de trabalho não se suspende nos pequenos milagres da natureza e, pelo que me toca, este eclipse tem três anos de atraso.

segunda-feira, julho 23, 2018

Carta para um rapaz de 15 anos


Eles dizem,
“faz isto, faz aquilo, faz o outro”
E a gente,
A gente diz que sim,
A gente finge que sim,
A gente decide que talvez,
A gente pensa que não quer,
A gente faz finca-pé e diz que não. Cruzamos os braços e dizemos que não, levantamos o queixo e dizemos que não, perguntamos porquê, perguntamos porque não, ficamos com fogo no estômago e rangemos os dentes, mas porque raios tem que ser um tem mesmo que ser?

Depois, depois às vezes lembro-me do Homem-Aranha ou do Harry Potter,
Gosto mais deles do que do super-homem, também gosto do Batman, o Batman agarrou nele e treinou-se e decidiu quem queria ser e como o queria fazer e pumba, fez. Mas o tipo era rico e isso é sempre uma ajuda e nós não somos ricos, tudo o que conquistarmos vai-nos sair mais da pele e do pêlo e do suor e do esforço. Bem, o Batman tambem suou, bem mais do que o super-homem que não era rico mas desde que nasceu que era um menininho especial cheio de força e olhos laser e peito de aço. Cabrão.

Mas o Homem Aranha e o Harry Potter. O Homem Aranha e o Harry Potter andavam lá nas suas vidas mais ou menos infelizes, sem saberem o que fazer com eles nem com tudo o que lhes corria mal, tudo o que não gostavam, o que não queriam, o que não entendiam que tinha que ser. Depois... depois lá se foram apercebendo que tinham talentos – um desde nascença, o outro por acaso – mas tinham talentos, e podiam fazer coisas com eles. As coisas certas. À maneira deles. E foram descobrindo que as coisas que eles achavam que eram as certas nem sempre eram, que às vezes os “tem que ser” tinham razões que a razão deles desconhecia, que havia mais mundo à volta do mundo deles. E com isso foram aprendendo a domar as impaciências, e com isso foram aprendendo a lidar com as coisas, a aceitar outras. A confiar no que sabiam mas também no que não sabiam. A ouvir o que sentiam, como medida de avaliar o certo e o errado. Ao final do dia a gente sabe sempre o que está certo ou errado, cá dentro. E então, então só é preciso coragem e força – às vezes para fazer acontecer, outras vezes para aguentar. Já dizia o treinador do Rocky, não interessa quantas vezes te batem, interessa quantas vezes te levantas.

Tu... tu és um bocado Homem Aranha ou Harry Potter. Talvez não a trepar paredes nem a lançar avada kedavras mas a vida também não é um filme de super-heróis. Os teus poderes são outros e já se começam a manifestar e tu, tu agora estás a lidar com eles, mesmo que não saibas, e às vezes à custa de um ou outro encontrão numa parede de um prédio, de um ou outro feitiço lançado à pessoa errada, de vez em quando, para acertares depois mais tarde. Continua a fazer o melhor que podes com aquilo que tens. O melhor está aí para vir.


terça-feira, dezembro 12, 2017

Serviço público de Natal - que livro oferecer?

"Ah e tal, tenho que dar uma prenda de Natal a ______ e acho que um livro era uma boa prenda... só que não leio o suficiente para saber de um bom livro, se calhar não é boa ideia..." - É boa ideia sim senhora! Além de tu pareceres interessante, ainda dás a possibilidade a alguém de se tornar interessante! E não temas a escolha, a amiga Sú dá uma ajuda. Ora vamos lá, bons livros que andam ai e para quem:

 - ROSA MONTERO, A CARNE - Um livro que todas as mulheres acima dos 50 anos deviam ler. Não tem nada que saber, é mulher? Tem mais de 50 anos? Oferece-lhe este livro. Já agora, tu és mulher, com mais de 50 anos e não recebeste este livro no Natal? Vai comprá-lo.

 - PAUL AUSTER, 4321 - um livro para aquele tipo (ou tipa) que é cheio de curiosidade intelectual. Que gosta de pensar e puxar pela cabeça, que nunca pergunta que horas são mas que te pergunta o que andas a fazer na vida e quem queres ser.

 - MIGUEL REAL, O ÚLTIMO EUROPEU 2284 - um livro para aquele gaiato ou gaiata, a partir dos 15 / 16, desde que sejam "uma granda cabeça". Também é óptimo para aquele amigo ou amiga que está sempre a fazer prognósticos acerca da ditadura para onde estamos a caminhar. - RITA FERRO, ÉS MEU - um livro muito curioso, que a recomendação é ambígua. Serve para aquela mulher melodramática, que vive tudo intensamente mas serve também e muito bem para aquele homem que nunca acerta com o que a mulher quer.

 - PATRÍCIA REIS - A CONSTRUÇÃO DO VAZIO - indicado para aquela pessoa que lê bastante e gosta realmente de ler. Aquela pessoa que tem autores de eleição (especialmente se forem autores portugueses), aquela pessoa que gosta mesmo de um bom livro e tens medo de lhe oferecer um porque se calhar já o tem. Tem é que ter mais de de 23 anos, ok? É um livro que exige uma certa maturidade emocional e mesmo assim dói-nos um bocado, ao princípio. Até podia ser para mim mas eu já o li, aceito outros dela no entanto.

 - YUVAL NOAH HARARI, HOMO DEUS - para aquela pessoa que está sempre interessada em perceber o mundo e a vida, tudo o que nos rodeia e os factos e dados sobre isso. Aquela que te alerta sempre para uma coisa curiosa que ainda não tinhas pensado nisso.

 - COLSON WHITEHEAD, A ESTRADA SUBTERRÂNEA - para aquela pessoa que gosta de romances históricos ou de aventura, não mete reis e rainhas mas é um dois em um.

 - ISABELA FIGUEIREDO, A GORDA - para aquelas meninas-mulheres que são ou querem ser verdadeiramente livres, descomplexadas e donas da sua vida. É um livro muita bom, que mostra que a vida não tem que ser o plano dos outros.

 E, se até és uma pessoa que leu coisas boas este ano que passou, que livro recomendarias para quem?

PS - Serviço Público de Natal - done.

quarta-feira, junho 21, 2017

reflexões sobre as reações a Pedrógão Grande

As primeiras notícias sobre Pedrógão traziam já a incompreensibilidade do número de mortos e os dedos indicadores de meio mundo erguiam-se mais ou menos ao acaso. Nas primeiras horas foram contra os criminosos do fogo posto, depois contra os bombeiros, depois contra a proteção civil. Pelo menos foi assim que a minha timeline de facebook se organizou. As horas seguintes trouxeram números a aumentar, na mesma estrada, e o medo de que chegando a mais aldeias e casas dispersas poderiam aumentar ainda mais. Trouxeram também algumas respostas, que não foi fogo posto, que os bombeiros estão articulados e vêm do país inteiro e arredores, que a proteção civil fez tudo direitinho e continua a fazer. O presidente, o segundo do governo a chegar ao posto de comando, trouxe calma ao secretário de estado que já lá estava, ajudou com certeza a organizar, falou até ao telefone com pessoas que se recusavam a sair das suas casas. Ao mesmo tempo havia já quem lhe apontava o dedo, os abracinhos não chegam Sr. Presidente. Agora, finalmente, reuniu-se mais ou menos consenso sobre para onde apontar os indicadores. São os eucaliptos, é a falta de limpeza das matas, é o governo que não aplica bem a lei, é o governo anterior, é este. É tudo, é qualquer coisa, é o pânico e o desnorteio. Somos deuses, não nos podemos permitir que a culpa morra solteira porque tem que haver culpa, tem que haver coisas que se possam fazer melhor para garantir que nunca mais, nunca mais, nunca mais, algo de semelhantes contornos possa acontecer neste país. É a humanidade a evoluir, é Portugal a evoluir. As imagens, os cenários, o que se viu e ouviu, tudo coisas que vão muito para além daquilo que hoje em dia, o homem civilizado tem a capacidade de aguentar. Um horror mais próximo de um teatro de guerra do que de um país de primeiro mundo. Vem daí a urgência em apontar os dedos, em encontrar culpados, em criar uma sensação - falsa ou real - de que jamais algo semelhante se possa repetir. Ninguém, português ou residente em portugal, deveria sequer pensar naquele horror, quanto mais vivê-lo, quanto mais morrer-se-lhe assim. A tentativa de impedir que tal volte a acontecer não está errada, claro. O apontar de dedo, ligeiro e pronto, é pura reação de pânico e horror. E é assim que um país evoluiu, melhora, se torna mais eficaz. No entanto, o raciocínio por detrás que é feito tem na sua semente um control que não sei se é real. Causas naturais ou humanas, tanto faz. O governo, o país, nós, nós temos o poder de controlar tudo, de impedir tudo, de conseguir tudo, desde que aloquemos os recursos, a atenção e os dedos em riste para os problemas. Nós somos os novos deuses, que não sofremos flagelos. Cometemos erros que se tornam desastres, não existem desastres em si. Só a nossa forma de lidar com eles. É melhor não pensar, é melhor apontar o dedo e acusar alguém, algo, qualquer coisa. Tudo para nos fazer esquecer esta sensação de fragilidade. É que se ainda não somos deuses, vamos sê-los muito em breve. Temos a certeza, com todos os inadmissíveis que acusamos.

segunda-feira, abril 10, 2017

Entrelançava os sonhos nas pontas dos dedos, ia brincando com eles enquanto os traduzia também em palavras, sonhos, esperanças, expectativas. os olhos brilhantes, planos, vontades e desejos, tudo seguro nas pontas dos dedos, enrodilhados uns nos outros, encadeados no entusiasmo da voz. eu ouvia, ia acenando que sim, pouco era chamado a participar nos devaneios. na minha cabeça perguntava-me, como é possível chegar-se a esta idade com tanto sonho? mas não formulei a pergunta. iria matar metade deles, não é essa vontade de que as coisas aconteçam que deve ser morta. tentei ajudar, só sonhar não chega, o que estás a fazer para chegar a esses lugares todos? puro discurso institucional, pura psicologia de algibeira, um silêncio a sublinhar a falta da resposta, a menina dos seus olhos a transformar-se em dois pontos de interrogação. brincar de sonhar vale tanto quanto delinear objectivos, pensei, calei de novo, não era chamado a participar mas estava ali para assistir e para me lembrar que o que temos de mais bonito não tem que se poder traduzir em indicadores de produtividade.

quarta-feira, fevereiro 01, 2017

dia de folga

Dizia o que queria e o que não queria, há algum tempo já que era assim. Antes disso, antes desse tempo, não dizia nada, calava e guardava nos bolsos do casaco, segurava e escondia nos bolsos das calças, punha para dentro e guardava no bolso da barriga. Agora não, e nem sabia explicar quando tinha sido o clique da mudança, se é que tinha havido um. Provavelmente não tinha havido nenhum, tinha lido algures que estas coisas são gra-du-ais, são de-va-ga-ri-nho, fazem-se como uma menina se faz mulher ou um rapaz se faz homem: sem se aperceber, sem se dar conta, sem querer e até sem crer. Quando se olham, já o são mas é o mundo que os vê que sabe disso, eles não, olham-se para dentro e não se vêem homem e mulher, olham-se para fora e ficam sem saber onde pôr os braços - se esticados ao lado do corpo, se nos bolsos, a tocarem nas coisas que calaram. Era por isso que às vezes lhe entrava esta raiva, não tinha pedido isto, não tinha querido nada disto, não tinha sonhado nada disto e agora tinha coisas que o mundo achava que ela tinha que fazer. E como as fazer. Comportadamente. Educadamente. Polidamente. Nesses dias apetecia-lhe gritar com o mundo e com qualquer pessoa que se lhe aparecesse à frente, nesses dias apetecia-lhe agarrar em tudo o que tinha guardado nos bolsos e aventá-los com força às cabeças que se lhe aparecessem à frente, mas não podia. Já podia dizer o que queria e o que não queria, mas não podia andar por aí a escorraçar raivas do corpo. O mundo não é um lugar de raivas, não pode ser um lugar de raivas. Raivas geram raivas e não se pode estar vivo sem se ter a noção do impacto que temos. Do quanto mexemos na vida dos outros, do quanto contagiamos os outros - com gripes, com raivas, com espirros, com sorrisos. Na maior parte desses dias - os agressivos e os de espirros, não os sorridentes - o melhor que há a fazer é esconder-se dentro de quatro paredes, afinal de contas uma raiva ocasional não é diferente de uma gripe, pensou, e ligou para o trabalho a dizer que hoje não podia ir contagiar pessoas.

terça-feira, junho 07, 2016

O Rui e os Dias*


Ele era boa pessoa, 
fazia os updates automáticos quando o tablet pedia, removia sempre o software em segurança, tinha uma conta poupança onde punha re-ligio-sa-men-te todos os meses uns bons 50 euros. Pedia recibos nos cafés, ia votar sempre que era preciso - desde que não estivesse a chover muito ou se as votações calhassem em período de férias, claro. Há muito que tinha deixado de discutir política e mesmo futebol discutia "com jeitinho", isto é, sem fazer muito alarido. Vá, uma laracha ou outra, um ou outro gozo com os amigos do clube rival, 
mas eles, 
eles acabavam sempre por ir buscar o campeonato de há 5 anos, ou outro qualquer anterior, e mais datas e nomes de jogadores que o Rui nem se lembrava. Nessas alturas, encolhia os ombros com meio sorriso e largava a conversa.

Estava inscrito num ginásio, um dia destes havia de voltar a começar a ir; quando se lembrava em algumas manhãs, até bebia um copo de água de um trago - tinha lido que fazia bem ao corpo, não custava tentar.
Gostava pouco de mudanças - da última vez que tinha sido obrigado a mudar de casa, durante um ano inteiro ia, de vez em quando, parar à porta do prédio antigo. Só quando a chave não funcionava na entrada cá de baixo é que se lembrava que já não morava ali e arrepiava caminho para a casa certa. "Que tontice" pensava, com um breve abanar de cabeça mas sem mais julgamento do que esses 3 segundos que lhe durava o pensamento. Às vezes ia jantar fora, normalmente com a equipa do trabalho, e depois um copo ao bairro alto. Reparava nas miúdas e nas mais graúdas que por lá rondavam mas era parco a fazer conversa. Já não ia para novo e as aventuras de uma noite que tivera eram mais que suficientes para se gabar a quem o quisesse ouvir.

Hoje em dia, nessas aventuras, até o aborrecia um bocado a manhã seguinte: roupa fora do sítio e lençóis com restos de maquilhagem. E ter que arrumar a casa e lavar os lençóis mesmo que não fosse dia disso, não, já tinha outra idade, já tinha outras prioridades, pensava para si mesmo. Além disso, aquela nova colega do escritório... ele achava que havia ali uma química. Nova - que já não era bem nova - fazia parte da outra equipa vai para dois anos; nunca tinham propriamente feito nada fora das responsabilidades laborais, nem trocado emails ou mensagens sobre outros temas além dos que lhes eram directamente temas profissionais. Mas às vezes, antes ou depois de uma reunião, ela fazia um bocadinho de conversa sobre o fim de semana seguinte e por duas vezes, quando ela passou por ele a caminho da impressora, lhe pôs a mão no ombro. Não precisava mais espaço para passar, mas mesmo assim pôs. Havia ali uma química, ele sabia, mas não que fosse de fazer algo por isso. As coisas haveriam de acontecer naturalmente, se tivessem que acontecer. E enquanto aconteciam ou não, acontecia a vida a escorregar por entre os dias mais ou menos organizados. Se lhe perguntassem se era feliz diria que sim, vá, normalmente feliz, afinal de contas que razão tinha para ser infeliz? Nenhuma, portando deveria ser feliz, sim.

*publicado em primeira mao aqui: https://quemcontaumconto.pt/o-rui-e-os-dias 

quinta-feira, junho 02, 2016

Insónia com reflexos

Alguém passa na rua, passos apressados, está um frio que se entranha. São 02:17 da manhã e a qualquer hora neste bairro há sempre alguém que chega ou vai - os silêncios da noite são intervalos nas histórias das pessoas que não conhecemos – e está visto que não vou mesmo conseguir dormir. Levanto-me da cama, amanhã o dia custará mais mas pensar nisso costuma apenas tornar a noite ainda mais longa. Acendo um cigarro de frente para ti, o intervalo nas histórias das pessoas que não conhecemos faz sentir que o bairro se deixou suspender, talvez fora do mundo, e aqui dentro o que vejo é apenas tanta interrogação no lado de dentro do teu olhar.
Tão longe e distante, criou-se tanto espaço entre nós. 

Na minha cabeça há muito que as incertezas se divertem a estorvar os outros pensamentos, queria-te pedir para me levares de volta a quando éramos mais fortes, a quando olhávamos as dificuldades com um sorriso trocista e segurávamos a respiração num folêgo antes de arregaçar as mangas, como quem mergulha de muito alto. Olho as tuas sobrancelhas, olho o teu nariz, olho os teus lábios. Conheço-os de cor, se soubesse desenhar poderia desenhá-los de memória e no entanto enquanto os olho agora, não tenho sequer a mínima sensação de familiaridade. 
Estás diferente. 
Estamos diferentes. 
Suspiro fundo, não tenho a certeza que possamos voltar ao que fomos sabes? E vejo que no teu olhar também há dor, não sei como fazer para voltarmos a ter a coragem que tínhamos, e vejo que os teus lábios também se contraem de tristeza, não sei como havemos de fazer... na rua passa um carro - há sempre alguém que chega ou vai - passo a mão pela franja desalinhada, suspiro fundo. 

Às vezes há que desistir e isto nem sequer são horas. Olho-me uma vez mais no espelho e penso para comigo que pode ser que talvez um dia me encontre.

terça-feira, abril 26, 2016

weather report

*perdoem-me a falta de acentos e cedilhas, diz que neste teclado num teim assim que olhem, paciencia...


Diziam que vinha para a chuva e para o cinzento mas (afinal) tinha vindo era para os intervalos (intercalados), como por exemplo hoje de manha (logo cedo). A manha ia ensolarada (mas fria) e depois houve (assim de repente) uma pausa (pequenina) de chuva torrencial (como se tivessem aberto mangueiras). Logo depois (assim seguidinho) voltou o sol e manteve-se (pelo menos meia hora!) ate ficar cinzento (mas menos frio). 
E eh assim (eh mesmo) que se vive a Primavera (aos solucos) nesta ilha.

Era so isto (era mesmo).

segunda-feira, outubro 12, 2015

Os tropeções da Veva

Apresentava-se como Veva o que causava sempre alguma estranheza mas tinha fácil explicação:
era Vera o nome de baptizo mas os érres foram a última letra que aprendeu a dizer, numa fase em que já tinha pressa de chamar por si e de Vera passou a Veva e ficou assim.

Despachada já se vê que era, mas também trapalhona - fácil de adivinhar. Mais do que isso, a Veva tinha mesmo algumas particularidades que conforme quem as referia se tratavam ora de:
"engraçadas" (à vista de quem gostava dela),
"desesperantes" (à vista de quem precisava de resultados dela),
"inacreditáveis" (à vista de quem a acabava de a conhecer),
 e,
"aterrorizantes" (à vista dela mesma que não sabia como lidar com elas).

A questão era de fácil diagnóstico e de re-la-ti-va-men-te fácil solução (não tão fácil assim, já lá chegamos),

Acontece que a Veva tinha aprendido mal duas lições na vida. Não sabia apertar os atacadores dos sapatos como-deve-ser nem sabia amar do-jeito-certo. Seja lá o que for isso de apertar os atacadores dos sapatos como-deve-ser, afinal de contas há tantas formas diferentes de apertar os atacadores... mas todas resultam e a dela simplesmente não resultava. Como consequência, a Veva andava aos tropeções pela vida - derivado do primeiro problema - e punha as pessoas a quem queria bem aos tropeções também - derivado do segundo.

A Veva sabia que tinha um problema e procurava incessantemente pela solução. Em todo o lado lhe aparecia - ou lhe diziam - tens primeiro que aprender a amar-te a ti mesma, tens que aprender a estar sozinha, só quando te valorizares poderás fazer alguém feliz e a Veva continuava aos tropeções e a magoar a quem gostava, a tentar descobrir sozinha como se faz, sem nunca lhe ter ocorrido que talvez a lição não lhe servisse. Afinal de contas, quantas são as pessoas que aprenderam sem ajuda como se dão nós nos atacadores?



quarta-feira, agosto 19, 2015

monologos de inverno, no verao

Em Piccadily Circus grafittaram um anjo por cima dos azulejos brancos que indicam o caminho para a saída. No Panamá, uma senhora a quem restam 5 dentes acordou gritando pela noite fora, que um demónio lhe entrou pelo sonho adentro,
só pode ser premonição, algo terrível vai acontecer,
é o que vai dizer á vizinha dentro de umas horas, e a outra a benzer-se, e a outra a benzer-se como se isso apagasse o pesadelo já tido. 

Por aqui chove-me pelo jantar adentro, ouvi dizer que em Santa Luzia puseram uma estátua de um menino agarrado á pilinha, como se fosse brussels mas sem a originalidade de ser a primeira ou a vigésima quarta mil. Sabes quantas santas luzias existem no mundo? Se bem me lembro, em dubrovnick havia uma esplanada igual aquela do bairro do alto, onde estive uma vez a ver se te via aparecer na curva e não vieste e perdi um sapo. Perdi um sapo mas ganhei um novo sitio para ficar, exactamente quando me vim embora e nunca tive como tu essa fé inabalável nos recomeços de continuidade. As vezes não é uma questão de fé, ás vezes é uma questão do que é, tão certo como as ruas de Roma cheias de vespas de luz acesa, tão certo quanto o toque certeiro que se ouve em marraquesh, tão certo quanto os Hamer terem inventado um pequeno instrumento que os guerreiros levavam nas caçadas e que servia para colher as lágrimas que lhes escorriam por estarem do lado de lá do horizonte que conheciam. As viagens nunca foram fáceis, e no entanto sempre se fizeram por mais do que obrigação. Em português de portugal, "assentar" tanto quer dizer ficar no mesmo sitio como ganhar juízo. Já em português do brasil é dar algo para um santo. Vá-se lá perceber o espírito humano, vá-se lá perceber apenas uma pessoa no mundo inteiro, e a outra a benzer-se agora mesmo, agora mesmo.

terça-feira, julho 07, 2015

Sr Augusto Silva, o pescador

*this is for you mate. specially because you can't read portuguese ;)


O dia amanhece cinzento e enevoado, mais um dia na vida de Augusto Silva, 45 anos de idade e cerca de 20 de relações falhadas, umas a seguir às outras.

Aos 20 anos não tem mal nenhum andar-se a falhar relações, diz que é suposto e faz parte da “aprendizagem emocional”. Seja lá o que isso for. Quando a primeira ex-namorada lhe saiu porta fora entre gritos e malas mal feitas, Augusto Silva encolheu os ombros e pensou que ela era a louca. Gajas desequilibradas, desabafa com os amigos nas raras ocasiões em que eles deixam as mulheres em casa com os filhos. E os amigos dizem que sim, tu sempre tiveste tendência para gajas loucas, devias arranjar uma equilibrada e normal. Uma relação saudável, para variar, e Augusto Silva não sabia mais se eram elas que eram loucas ou se era ele que as estragava. Lembra-se da semana passada, roupas aventadas pela janela do terceiro andar e gritos vários sobre o monstro que ele era, entre várias comparações, metáforas, disfemismos e outros lirismos. Esta era tão louca como as outras, mas lá tinha que dar a mão à palmatória, tinha criativas formas de o insultar. Gajas desequilibradas, confirma, e lá dentro guarda a dúvida do que andará a fazer mal. Talvez deva ter mais paciência. Talvez deva conseguir engolir mais sapos. Talvez seja exigente demais – já lho disseram uma vez. Bom, mais vezes, mas foi sempre a mesma, se calhar não conta. Ou será que conta?

No bar passa uma miúda gira, terá uns 38 anos, aos 45 alguém com 38 é uma miúda, todos somos miúdos se não estamos já casados ou divorciados ou viúvos. Já houve outras mais novas, já houve outras mais velhas, todas loucas. Ou seria ele? Bah, desvia o olhar e nem tenta meter conversa, então Augusto, estás a desistir? Ah.. não.. é só hoje que não me apetece, de resto também não é nada de especial. Não me digas que ainda estás a pensar na outra. Sabes.. eu gostava mesmo desta. Gosto. Não sei o que correu mal. Achas que lhe ligue? Ao menos para saber que fiz de errado.. e se ela me ajuda a não o tornar a fazer...? Será demasiado cedo..? Será exigir demais? Augusto.. Err... Nem sei que te diga... Se quiseres mesmo... achas que vai servir de alguma coisa?

Achava que não, já tinha tentado outras vezes e concluiu de todas as vezes que estes exercícios melo-dramáticos só resultavam em mais agressividades trocadas. Que se lixe, já se tinham magoado demasiado, já se tinha magoado demasiado, se calhar era só melhor desistir. Ainda que houvessem mais peixes no mar, a verdade é que não eram as competências de pescador que lhe faltavam. O que fazer com os peixes depois é que lhe parecia escapar e muito. Ou se calhar era mesmo isso, não era sobre casar e ter filhos e uma vida estável, era sobre ter actividades de curto prazo com benefícios rápidos e a seguir, seguir para bingo. Afinal se resultava em tudo o resto na vida dele porque haveria de ser diferente neste tema?


Augusto Silva acabou a caneca de cerveja de um trago. Olhou de relance a miúda que tinha passado e virou costas. Hoje por certo não era noite de mais nada. E amanhã provavelmente também não.

segunda-feira, junho 01, 2015

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Nasceu com um bloqueio no coração, sabes? Ao principio ninguém deu conta, era só um bebe que sorria pouco mas com o tempo aprendeu as alturas em que devia sorrir. Os momentos para o sorriso. E o bloqueio foi passando despercebido, tornou-se pior na adolescência, pelo menos acho que ela começou a suspeitar de alguma coisa diferente, quando lia poesia e se prendia nas métricas ou quando as amigas sussurravam em histéricos risinhos o nome do rapazinho que lhes corava as bochechas. Aprendeu a fazer parecido, a conhecer os momentos certos para este ou aquele suspiro, imitava na perfeição a vergonha mal disfarçada mas nunca conseguiu que as bochechas se lhe corassem. Também não chegou a ser preciso, nunca houve observador tao atento que lhe estranhasse a falta desse sinal quando os outros abundavam. Nem toda a gente cora, diria se lhe perguntassem, nem toda a gente chora, também haveria dito se lhe perguntassem mas ainda bem que nao perguntaram porque se calhar esta afirmação levantaria maior estranheza.

Nasceu com um bloqueio no coração, sabes? Acho que nunca ninguém deu conta mas ela sabia que havia algo de pouco natural na forma como antecipava os momentos para falar ou calar, na mestria como mostrava a reacção certa, no momento certo, quase como ensaiado. Não fazia colecções de muitas coisas, apenas de sinais disto ou daquilo. Caminhos lógicos para chegar a conclusões emocionais, decisões ponderadas para demonstrar impulsividade, surpresa ensaiada para não defraudar expectativas e alguns silêncios escondidos nas quatro paredes de sua casa para quando se cansava dos teatros dos dias.


Não sei se alguma vez foi realmente feliz. Quer dizer, sei que gostava de algumas coisas, gostava de andar de bicicleta rua abaixo, especialmente no final do verão quando acabavam de por asfalto novo que nunca durava ate ao ano seguinte. Gostava do cinema ao ar livre nas noites quentes, que a câmara montava no jardim. Eram poucos os momentos em que os olhos brilhavam mas suponho que mesmo com um bloqueio no coração possas sentir o vento na cara ou sonhar em ser outra coisa qualquer.