segunda-feira, setembro 06, 2021

neste momento

 Neste momento, algures no mundo, alguém põe o pé descalço na areia de uma qualquer praia e respira em direção ao horizonte.

Alguém troca a fralda suja de um bébé, enchendo-o de beijinhos sonoros na barriga,

alguém acaba de escolher finalmente que livro levar e prepara-se para ir para a caixa.

Não sei de estatísticas, mas talvez duas pessoas tenham acabado de fazer match no tinder,

alguém abre uma cerveja para pôr um ponto final num dia cansado,

alguém abre a porta do carro em jeito cavalheiramente sorridente sem dizer que já estamos atrasados para o jantar,

alguma mãe irritada deixa escapar um grito de zanga e a sua criança se põe em sentido, já devido há algumas horas,

um escritor que não se intitula assim olha para uma folha em branco no computador sem saber muito bem como começar enquanto um pastor conta as cabeças do rebanho para estar certo que não lhe falta nenhuma.

em algum lugar sem assistência haverá uma folha seca que se desloca pelo vento do pé da raiz-mãe para uns metros mais à frente, será abrigo de um qualquer insecto desconhecido por esta noite,

alguém olha pela janela e suspira por outro alguém que não está por perto,

uma criança aprende que se pedir um desejo à primeira estrela da noite, ele talvez se concretize. Agora só falta saber o que quer desejar.

quinta-feira, abril 22, 2021

Dona Léria

Dona Léria

trazia

na voz 

a calma de um lago primaveril.

Dona Léria

pestanejava 

com 

todo o tempo do mundo.

Um pestanejar

podia durar

todo um segundo.

Não guardava urgências - nem nas pregas da roupa, nem em lado algum.

Sacudia-as

com um respirar pausado,

afastava-as

com um manejar bailado.

Dona Léria embrulhava-se em tranquilidade, não tinha problemas com o silêncio - o que às vezes deixava as pessoas à volta confusas, desconcertadas. Que vinham com partes de histórias e voltavam totalmente desarrumadas. Dona Léria criava assim desarrumações pessoais, 

e gostava.

terça-feira, março 30, 2021

Shhh, deixa-te estar sossegado mais um bocado

Shhh, deixa-te estar sossegado mais um bocado,
deixa-te ficar nestas quatro paredes onde aprendeste a distinguir cada nova mancha,
onde aprendeste a ler as horas do dia nas danças dos raios e sombras na madeira do chão,
na tinta da parede,
sobre os móveis e plantas sobreviventes.

Deixa-te ficar sossegado mais um bocado,
deixa-te ficar nestas quatro paredes enquanto te comes um mundo virtual, apimentado por uma nova qualquer experiência culinária, a tentar que os dias saibam diferentes, a saber que os dias te sabem diferente.

O mundo, lá fora, parou. Parou por um momento só,
depois continuou vibrante mas sem ti. Não lhes fazemos falta nas manifestações,
nas tentativas de revoluções,
nas vozes irritadas contra os invisíveis,
nos disparos sobre Moçambique,
nos empurrões a um barco encalhado que afunda também uma economia. A global. A que já estava afundada mesmo.

Daqui a nada há-de ser diferente,
daqui a nada vamos para a rua dançar,
daqui a nada voltamos aos abraços,
aos brindes e conversas cruzadas.
Daqui a nada há uma vacina, ou duas ou três ou vinte, as que sobrarem de países mais ricos,
talvez venham cá parar e possa ser diferente. Do agora, do que foi.

Pudéssemos nós reinventar o que nunca se viu, uma vez mais, mas agora com as rédeas nas mãos. Será que podemos?