segunda-feira, janeiro 24, 2011

Estranhas Encruzilhadas

- Mas demoras muito a chegar?

- Não sei, acho que me perdi!

- Estás onde?

- No Beco do Fim das Relações.

- Ui. Isso não é a melhor zona da cidade.

- Calculei, pelo aspecto. Como faço para sair daqui?

- Pois, ainda por cima isso aí é um autêntico labirinto. Mas tem várias opções. Atrás de ti tens um cruzamento, não tens?

- Sim, estou de frente para ele.

- A rua da direita vai dar a outras duas ruas. Uma delas leva-te de volta ao beco onde estás, a outra leva-te à praça de onde vieste. Chama-se “Rua dos Regressos”.

- Sim, estou a ver… mas é um bocado muito íngreme, não?

- É, é. E escorregadia, muita gente vem cá parar abaixo outra vez, que não é nada fácil de subir.

- Ok, a praça de onde vim não era má, não. Mas será que ainda vai estar igual?

- Há-de ter algumas coisas iguais, outras diferentes. Também para lá chegares vais ter que estar diferente e largar metade da bagagem, se não não consegues subir a rua.

- Ok. E as outras?

- Á tua frente tens uma rua larga e florida, certo?

- Sim! Com óptimo alcatrão e piso, várias faixas de rodagem e árvores! Parece uma óptima rua!

- Pois. Mas vai dar a uma praça meio estranha. È de terra batida e meio deserta, chama-se “Praça da Resignação” e essa rua que vês tem o nome de “Relações de conveniência apressada por medo da solidão”.

- Uhm… ok. E à esquerda? Esta rua estreitinha?

- Ah. Essa é a “Rua da descoberta” e vai a um largo muito fixe, de onde depois saem mais caminhos.

- Está cheia de buracos e é meio escura.

- Sim, e super-estreita, só dá para passar de uma pessoa de cada vez, e às vezes de lado. Também não é uma rua fácil de se fazer.

- E então, afinal para onde vou?

- Isso eu não sei, tu é que tens que te decidir.

- E tu?

- E eu o quê?

- Estás onde?

- Estou no Largo das Esperanças à tua espera.

- Mas os caminhos que disseste vão dar aí?

- Não sei. Depende.

- Então, e vais ficar aí à minha espera se eu não sei se aí vou dar?

- Vou. Só até ficar de noite, que isto é um bocado desabrigado. Depois, se não chegares, há aqui outras ruas também, por onde posso ir. Não sei, logo vejo.

quarta-feira, janeiro 19, 2011

“I should have been a pair of ragged claws
Scuttling across the floors of silent seas."
T.S. Elliot

- Fala-me das pedras…
- Ah, essas também estão sempre lá e não são intervalo, excepção nem regra
- Continua…
- Também não são fuga, ferida aberta ou trapos remendados nos músculos
- São o quê?
- As pedras contam (nos). São (nos) o menos para que tudo o resto (nos) conte mais.
- Todas as pedras?
- Todas.
- Quais?
- As que querias ter rematado com um sorriso. As que querias nem ter visto da primeira vez. As que escolheste ver de novo. As que esqueceste, as que escondeste, as que guardaste e trazes todos os dias e no intervalo deles…
- No intervalo?
- E antes e depois e durante… as que são cascata de punhais aflitos e as que são vinho quente num crepúsculo temperado de canela e dedos esguios à lareira.
- Uhm...de que é que gostas mais nas pedras?
- Da música.
- Qual música?
- A das pedras.

terça-feira, janeiro 18, 2011

Catarina, a Donzela incompreendida

Na Urbes Imperatoria Salatia existiu, nos tempos remotos dos poemas de amor e das serenatas, uma Donzela de seu nome Catarina. Catarina de La Pirose Totalle (façam favor de ler o seu nome com entoação francesa para lhe dar a solenidade devida!)

Catarina não era uma Donzela qualquer, como essas que só andam p'ra aí a donzelar o dia todo. Naaa...dessas havia-as aos molhos na Salatia; tantas que o Presidente da civitas mandou publicar um édito que aprovava um novo imposto municipal a ser pago por todos aqueles que albergassem mais do que uma Donzela em suas casas (tipo política do filho único na China mas só que na Salatia e algures no século XIII.)

Mas voltando à bela Donzela da nossa história, Catarina era detentora de uma beleza inigualável; os seus olhos verdes que adoptavam tons de mel em dias de maior claridade e os seus caracóis dourados sempre meticulosamente penteados com a melhor brilhantina da época enchiam o imaginário dos jovens salineiros que se dirigiam ao rio Sado ao fim do dia para a ver passear nas suas margens (bem sei que soa a cliché mas façam o favor de continuar a ler!).

No entanto algo diferenciava Catarina das outras Donzelas da sua idade, fazendo-a, desde cedo, sentir-se incompreendida por parte de todos os que a rodeavam. O diálogo com os seus pais era inexistente; os jovens salineiros haviam há muito cessado as suas tentativas de conversar com ela e quando o faziam as únicas reacções que obtinha eram olhares intrigados, curiosos ou até assustados. Nem sequer tinha uma melhor amiga para desabafar ou com quem partilhar as suas angústias. Todos a consideravam estranha. (sei o que estão a pensar: dêm-lhe um maço de tabaco e um cd dos The Doors e temos uma típica Donzela da Salatia do século XIII. Mas continuem a ler que não se trata disso.)

Perguntava-se muitas vezes qual seria o seu problema mas nunca chegava a nenhuma conclusão; por mais que tentasse integrar-se, todas as suas tentativas saíam frustradas. O que estaria a fazer mal?

Foi durante um desses momentos introspectivos, que geralmente a conduziam a um estado de desespero incontrolável, que Catarina se encheu de coragem e, numa derradeira tentativa de alterar o rumo das coisas respirou fundo e disse à sua mãe na única língua em que sabia expressar-se: "Mutter, was ist los mit mir? Ich fühle, dass ich nicht verstehen kann und tun, was die Leute denken ich bin komisch ... warum schaust du mich so an?"

segunda-feira, janeiro 17, 2011

doming, II acto

Não sabia, quando sai da cama, que hoje seria novamente domingo. Escrevo "novamente" porque ontem já foi domingo. Dois domingos seguidos, a semana passou uma rasteira ao tempo mas não estou certa que mais alguém se tenha apercebido.

Ouvi dizer que chovia lá fora. Estranho, porque não vejo, mas disseram-me que chovia e traziam cabelos e ombros encharcados, pingas grossas a escorrerem nas sobrancelhas, presas na pestana, a deslizarem na cara. Chove lá fora, e eu que estou na rua penso que não estarei naquele lá fora. Não me importo. Não foi hoje que descobri que os labirintos das pessoas são diferentes, que os caminhos cruzados não se tocam nos cruzamentos, que todas as estradas vão dar a sítio nenhum. Não, o que eu hoje descobri é que é domingo e as pessoas não o sabem e viemos todos trabalhar. Ou então fingimos todos que não sabemos - afinal, também eu não o disse a ninguém - para que pareça menos domingo do que o que é.

Podia ser. Podia até ser outro dia qualquer. Segunda-feira, era expectável que fosse segunda. Poderia ser sétima, ou oitava. Tinha que ser domingo, de que outra forma gozaria as ironias secretas das existências discretas?

Se tivesse força montaria uma conspiração. Para encher os domingos de verão e gelados de limão. Não seria suficiente, já sei. Mas podia ser.

Se tivesse jeito desenharia um arco na tua íris. Para encher os domingos de passeios rodeados de caricatas arquitecturas, ou forrados a relva e cheios de cães com bolas de ténis na boca.

Se tivesse capacidade, poderia encher os domingos de segredos misteriosos e de descobertas ansiosas. Ou gargalhadas daquelas que nascem no estomago e se libertam nos olhos.

É domingo. E aos domingos não se tem nada, para se fazer qualquer coisa. Pelo menos enquanto faltar uma lareira, por causa da chuva lá fora.

quarta-feira, janeiro 12, 2011

"Como acordam os sentidos? Os meus, por meias palavras."
M.G.Llansol


- Explica-me…
- Como olhos rasgados a contemplar a agitação de outro silêncio
- Como?
- Como a sede de outros séculos a superar-nos o tempo do corpo
- Do corpo?
- Sim. Como um gato que desenha oitos nas tuas pernas cada vez que chegas a casa. Podem ser oitos, um circuito fechado ou…
- Infinito…
- Depois cortam-te os dias em que não chegas e o mundo é demasiado grande para o ar que tens nos bolsos.
- E o gato?
- O gato continua lá.
- Sempre?
- O tempo suficiente. O tempo que está disposto a esperar pelo tempo. Se tiveres sorte é o teu tempo todo que não é o tempo todo dele.
- Uhm…
- É como passar o dia a procurar uma palavra que não encontras. Talvez por ser demasiado longa ou por só se escutar nos vértices da pele antes da pele
- A pele não tem vértices
- Precisamente. Demora a chegar. Mas entre tanto(s) dissolve-se nas tuas mãos e multiplica-te no espaço. Dissolve-te também.
- E o tempo?

- É como o gato e os soluços do corpo.

quinta-feira, janeiro 06, 2011

what's a dream?

Levantou-se da cama, e ainda era a noite o que vestia aquilo que viria a ser o dia, lá fora. Ainda era noite, mas não era tempo. As madrugadas têm uma luz inesperada, de quem se sabe ser a inexistência do tempo. Só espaço, e quando se levantou da cama, todo o espaço era dela. Não o do mundo, o outro espaço, fora do mundo, mais longe que o horizonte.

Ouviu no vento que batia na janela o seu nome. Não estranhou, conhecia o apelo. Dois passos, mão no puxador, um clique. O vidro frio saiu-lhe da frente e o bairro que conhecia desenrolou-se-lhe aos pés descalços. Como é diferente esta terra, nas madrugadas, pensou. Ou será que é diferente esta terra, nos dias com máscaras coladas? Não se debateu muito sobre a questão, não tinha pressa mas segurava urgências. Abriu os braços e tirou os pés do chão, levantou voo pela madrugada dentro, de mãos dadas com o vento que a chamava, de olhos abertos para uma terra iluminada pela luz prata da lua. Passou por cima do seu bairro, passou por cima da sua cidade, olhou os becos escuros, uma ou outra pessoa que passava sem reparar na sombra dela reflectida no chão. Passou por cima dos rios e das pontes, viu alguns carros solitários nas auto-estradas, sorriu-se para a lua e fez festas às nuvens.

O mundo - o mundo que achava que ela lhe pertencia - sonhava inteiro, só ela estava acordada no céu das rimas arritmadas.

Quando o sol começou a querer ameaçar nascer, soube que já era hora de o mundo voltar a ter horas, o regresso ao seu quarto impunha-se, a volta à sua cama era um imperativo. Não queria ser descoberta, olhada de soslaio como a louca que passava as madrugadas a voar. Entrou pela mesma janela por onde havia saído, correu o vidro e puxou o trinco. Deitou-se na cama e fechou os olhos. Era agora a altura dela sonhar, sonhar que se levantava e tinha um trabalho, sonhar que tinha obrigações e responsabilidades, sonhar que tinha preocupações e amizades. Mais logo acordaria de novo e poderia voltar a voar, sem ninguém ver, sem ninguém suspeitar.

quarta-feira, janeiro 05, 2011

Dona Gardênia e sua borboleta

Dona Gardênia tinha o espírito primaveril reflectido nos olhos azul-águados e envolto no cheiro florescido dos seus cabelos longos.



Quando passava nos corredores, o perfume que usava por lá ficava, muito após a sua passagem. Pairava no ar e paráva quem por lá andava. Uns reconheciam-no imediatamente, outros abriam as narinas com olhos de admiração e sobrancelhas de espanto.



Dona Gardênia de sorriso fácil, escondia em sua casa um tesouro pouco secreto. "A minha paixão desde criança", dizia enquanto mostrava uma enorme colecção de borboletas. Havia-as de todas as cores, tamanhos e feitios. Cuidadosamente espetadas em alfinetes, de asas bem abertas, de cores e padrões mais ou menos definidos, de olhos secos e vazios. Era a sua amada colecção de cadáveres de borboletas.



Numa caixa mais pequena, guardava as mais raras e belas. Azuis, vermelhas, laranjas, verdes. De círculos nas asas, simétricas - "para simularem olhos de predadores maiores, é uma técnica de defesa da natureza", explicava Dona Gardênia, de beiços embevecidos, de olhos humedecidos.



Dona Gardênia tinha também álbuns cheios de fotos - de expedições e outras loucuras, pelas Áfricas, Ásias, Américas, Europas. Continentes onde havia andado, de botas altas castanhas, coletes largos verdes, olhos argutos esfomeados e redes variadas à mão. A farda da silenciosa e lenta caça de novos exemplares coleccionáveis.



Havia uma coisa curiosa, na caixa mais pequena das borboletas encantadas - um espaço vazio, um alfinete sem cadáver por baixo, um corpo ausente. Uma borboleta por preencher, era a que faltava na sua colecção. Uma e apenas uma. Já não era nova, Dona Gardênia, mas sempre tinha sido ambiciosa. Não iria deixar a colecção inacabada, seria a sua última expedição, mas seria também a borboleta mais valiosa. E com a vantagem que, desta vez, não seria preciso viajar para muito longe. A noite já estava escolhida e seria precisamente hoje. Dentro de duas linhas, para ser mais precisa.

Quando Dona Gardênia achou que faltava pouco para a caçada da última e mais valiosa borboleta, levantou-se calmamente do sofá, sem desligar a televisão. Os passos entre a sala e o quarto foram seguros e calmos, a forma de vestir também. Não iria de botas castanhas e colete verde, a borboleta mais especial não habitava a mesma natureza cheia de vida onde tinha colectado as restantes de sua colecção. Era preta a farda desta noite. Confortável, sem ser larga, sapatos silenciosos, cabelos longos apanhados por baixo de um gorro de preta lã. Dona Gardênia estava pronta para ser a única detentora do mundo da espécie de borboletas mais rara.

Lanterna numa mão, martelo na outra. Ao ver-se ao espelho, sorriu. Dona Gardênia parecia um ladrão e não uma hábil e ambiciosa coleccionadora de insectos coloridos.

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A polícia bateu-lhe à porta logo pela manhã. A porta não foi aberta, seguiu-se o arrombamento, 10 homens fardados empunhando pistolas a correrem pela sala, a correrem até ao quarto, a chegarem ao escritório. Dona Gardênia, sem gorro nem cabelo alinhado, sentada no chão. A cara marcada por lágrimas, as mãos e a roupa cheias de sangue, a caixa das borboletas mais preciosas ao lado, caída, meia destruída, desalinhada.

Foi presa e condenada.
Prisão perpétua pelo homícidio de um casal de jovens namorados, com requintes de malvadez. Que os tinha estripado, arrancado o estômago e os intestinos, revolto e aberto orgãos, na busca desesperada de umas tais "borboletas no estômago dos apaixonados".

Não as encontrou e a sua colecção ficou para sempre inacabada.