segunda-feira, dezembro 17, 2012

Miss Patsy



Miss Patsy was a sweet lady in her sixties, big brown eyes and lazy smile, soft gestures and gentle posture every time she wanted her wishes to be satisfied. Miss Patsy didn’t like to talk loud, “it’s not appropriate for a real lady” she used to say, but often forgot it when in some shop or restaurant the waitress did something wrong. “I asked for a fresh orange juice you incompetent!” she would not be afraid to scream.

A spoiled child by her parents, Miss Patsy did never totally grow up. An immature and childish sense of unfairness would make her cry over the injustice she was a victim. “Because people are never nice to me, because red lights are always against me, because nobody understands how important it is for me to have a brand new car today!”

She was never very happy, Miss Patsy, and she never married. She had a bunch of boyfriends, enchanted by her eyes, scared away by her mood swings and demands.

Poor Miss Patsy died when she wanted only to be independent – she was getting out the subway when someone whispered to her “please mind the gap”. But she knew no one in earth could tell her what to do and so she didn’t listen.

Other passengers had to wait for 5 hours while the fireman managed to take out the stubborn body.

terça-feira, dezembro 04, 2012

Subia a rua como todos os dias, mala ao ombro e saco na mão. Hoje trazia casaco que o Inverno fazia-se sentir e trazia histórias e memórias nascidas dos anos que passavam que criam estas lembranças e esperanças que nem sempre se traduzem em respostas. Acabam com as perguntas, contudo, pensava enquanto tricotava pensamentos com muito maior ligeireza do que costumava tricotar cachecóis. 

Tinha visto estas árvores crescerem, tinha visto duas delas serem arrancadas às raízes em dois Invernos mais penosos do que o deste ano, tinha assistido a mais de 50 decorações de natal diferentes, parecidas, quase iguais, todas com luzes fundidas. 

Conhecia as pedras das calçadas de uns anos para os outros, as pedras que faltavam e as outras que rebentavam, as que foram substituídas  as que lá estavam desde os primórdios das vidas que moravam naquela rua. 

Fora naquele canto que tinha dado o primeiro beijo apaixonado ao que viria a ser marido, já não se lembrava disso quando ali passava, ocupada a decidir o que seria o jantar, e que bom que era fazer uns bifinhos mas era fim do mês, talvez arroz com feijão à falta de lombo arranjadinho, estava bem arranjada era com o que tinha que carregar no próprio lombo, que os sacos começam a pesar mais, não é o peso dos sacos, as pernas é que já não respondem como antes, lembras-te antes que aguentavas uma tarde inteira a dançar nos domingos de verão no largo da igreja? Ah, e eles faziam fila para dançar comigo, e diziam-me sussurros aos ouvidos e de todos escolhi o melhor, o mais dançarino e divertido, uma mão atrevida a querer baixar mais do que a conta e as palavras doces que me murmurava sem mais ninguém saber. Agora os tempos são outros, não dançamos mais que as pernas não deixam, não me diz palavras doces mas gosta de mim à maneira dele, quando reclama com o jantar ou quando quer sossego para ver a bola, quando chega a casa cansado e me pede cervejas, quando estou a cozinhar e ele finge que nem me vê mas eu sei que quando estou de costas ele olha para mim. Nunca o apanhei, acho que é vergonha, mas eu sei que ele olha para mim quando não o estou a ver.

quarta-feira, novembro 28, 2012

Dona Céu - external and anonymous collaboration


Dona Céu is 53 years old. She’s divorced and has 2 kids that she sees often enough. She lives with a friend in the south of Spain in a small house with a blue door. She picked the house because of the blue door. Somehow it made sense to live in a house with a blue door when your name means sky.

She loves to cook and to gather friends and family around the dinner table chatting and eating her marvelous cooking. She’s particularly good with the oven. Everything she bakes comes out tasting delicious. Her friends often joke she could bake a rock and it would come out tasting delicious.
Dona Ceu works with old people. She feels it’s her way to give back to society. Most people would prefer to work with children but it her case she feels old people need her more and she feels it’s rewarding to be where you’re needed.

She has very few worldly possessions except for her book collection and an old porche. These seem to be her only 2 hobbies in life.

She used to travel a lot around the world and sometimes in the very few occasions when she has a lot of scotch you can still listen to her stories about distant places and different lives.
When asked why she doesn’t travel anymore she usually answers she’s happy where she is.


(Dona Céu has been created/found by a friend)

segunda-feira, novembro 26, 2012

V.


Há uma cidade onde as estradas são líquidas e as teimosias imunes à vontade de prender os pés no chão. Há uma cidade onde as ruas são feitas de marés e os homens não decidem os caminhos que percorrem, docilmente entregues a correntes e ventos, aprenderam à muito que os lemes são ilusões de controlo e que é na aceitação da descoberta imprevisível que se dobram esquinas de algas e lodo para se chegar a algum lado diferente, outro qualquer.

Há uma cidade construída por pontes a segurarem as margens dos caminhos, a servirem de aproximações ao que não nasceu junto, a quererem ligações ao que nunca foi uno. Dizem em outras cidades que não separe o homem aquilo que Deus juntou, mas nesta terra-água cabe ao homem juntar o que Deus separou.

Poderiam os homens deste estranho sítio serem homens-peixe, escorregadios e adaptados ao ambiente, mas a sua missão é maior do que a lei de darwin. trazem nos genes as improbabilidades acontecidas, trazem na pele as âncoras que os prendem ao não determinismo próprio.

segunda-feira, novembro 19, 2012

Dona Selena


"Se pudesse ia, 
se soubesse cantava, 
se houvesse ficava, 
se quisessem dançava, 
se sonhasse saltava, 
se mais houvesse menos lá chegava..."

Assim pensava Dona Selena, entre ruas cruzadas e atalhos paralelos, entre possibilidades remotas e condicionantes internas, entre ilusões e obrigações.

Na cidade conheciam-na bem, especialmente os lojistas, "Bom dia Dona Selena, que procura hoje?", ah, procuraria um vestido se houvesse aí uma festa aonde ir, mas um vestido amarelo se vocês tivessem, mas se este fosse mais curto era perfeito para um casamento ou baptizado!.. Mas não há, diga-me lá, quero uma camisola, se tiverem do meu tamanho, se houver com flores verdes, se amanhã estiver sol quero ir de verde, se for mesmo fazer greve porque como as coisas estão, ah, se eu tivesse partido quando era nova, agora é que era, quando era nova, se tivesse ido não tinha esta vida...

E não teria esta vida, se tivesse partido quando o namorado lhe propôs, se tivesse agarrado nas malas com as duas mãos em vez de ter ficado de mãos atadas a pensar e se não arranjo trabalho, e se deixas de gostar de mim, e se tenho saudades, e se me acontece algo e tenho que ir ao hospital, e se de repente sou feliz e não sei...?

Não lhe serviram de nada as hesitações quando nas noites mais frias Dona Selena começava as suas divagações, desliando e enliando compridos fios de possibilidades sobre se era para ser, como teria corrido, se tivesse ido, onde estaria, como seria. Não sabe Dona Selena que numa vida paralela existe outra ela, deitada noutra cama e com outra vida que nas noites mais frias pondera como seria se tivesse ficado, se tivesse lutado, se se tivesse agarrado ao que conhecia.
Ali ao fundo da estrada vê-se uma sombra que acena, mesmo ali, ao fundo da estrada, olha pra lá, pela janela, lá ao fundo... reconheces-te a ti a acenares-te um adeus de quem já foi?

segunda-feira, outubro 22, 2012

Nem sempre as coisas que se nos escapam entre os dedos caem no chão. Larguei pássaros suficientes para o saber. De todos, lembro-me de uma andorinha, adolescente feita, de asas sem mágoas mas assustada demais para se fazer a uma vida entre nuvens e migrações. Lembro-me de um tio de bigode a dizer que tinha que a atirar, lembro-me de mim a dizer que não, lembro-me dele ma tirar em homem decidido, apanhar balanço com a mão e atira-la por cima do telhado da casa do avô, lembro-me de ter antecipado a queda em elipse que o corpo mais pesado que a gravidade ia fazer e da surpresa no estômago quando a previsão se mostrou errada e o trajecto foi seguro e decidido. Por cima do telhado, para os lados do horizonte.

Não bastou abrir as mãos, ali, que isso já eu tinha tentado sem resultado. Foi violento e cheio de força, o atirar do bicho, o aventar do bicho, por cima de um telhado de uma casa. Gente que sabe, acho eu, se não, correu bem. Não me lembro qual tio era, duvido que se lembre da história também. Gostava de saber, se sabia mesmo ou se acreditou com palpite.

Nem sempre as trajectórias adivinhadas são as que se cumprem. Nem sempre há coragem para libertar algo. Como se o prender fosse mais do que uma ilusão, ou como se manter limitado fosse certo de que há a vontade de ficar.

Nem sempre as coisas que se nos escapam entre os dedos caem no chão. Larguei pássaros suficientes para o saber.





terça-feira, outubro 16, 2012

Dona Opala

Dona Opala trazia nos braços a calma dos lagos azuis profundos. Tinha um céu brilhante nos olhos e os sonhos carregados de safiras. Não havia nuvens nas deambulações de Dona Opala, calmamente sentada  no cadeirão da sala, Dona Opala fantasiava com um mundo brilhante e sorridente.

Assim vivia Dona Opala, de respostas serenas e sorriso sossegado, gestos tranquilos e muitas horas de sono. Dormitava e acordava, adormecia e ressonava, levantava-se do sofá e ia para a cama.

Senhora de uma existência sem percalços  Dona Opala navegava no mar da tranquilidade. Deixou saudade Dona Opala, quando numa noite sem tempestade se afogou na realidade, ao ouvir o primeiro ministro a falar dos novos cortes orçamentais.

terça-feira, outubro 09, 2012

Nem aos blogs confesso

Sabes que sonho.
Que ás vezes me perco nas entradas e estradas dos meus próprios sonhos, nas ilusões que idealizei. Que me esqueço da realidade para esquecer a saudade, que me agarro a fantasias para fazer durar os dias.

Sabes que me perco.
Em emaranhados de suposições, em "ses" infinitos, em completas divagações, para não ter que sentir as âncoras das existências. Como se pudessemos criar um navio, como se houvesse outro mundo do lado de lá do horizonte, como se não estivessemos sempre, em todos os momentos, do lado de cá do horizonte. Sempre. Do lado de cá. Não há outra forma de existência sem ser esta, do lado de cá do horizonte.

Sabes das deambulações.
Entre códigos, signos e objectividades, entre formas, conceitos e supostas verdades, entre ignorâncias mal tapadas com pedacinhos sonantes, chavões, palavrões, meta-questões, com a desculpa de procurar qualquer coisa mais profunda, mais densa, qualquer coisa que não existe mas persiste na vontade irrealizável.

São desculpas. São fugas. Esconderijos provisórios de baixa qualidade.
A vontade de ser pássaro sem ter asas.
O nunca deixar de sentir o vento na cara.
O não deslargar nunca daquilo que jamais pode ser.
Para fingir que não se tem o que se tem.

terça-feira, setembro 04, 2012

D. Olimpia

Dona Olimpia corria corria corria para ver se da sua angústia fugia. Começou tarde nas correrias, tinha por volta dos 45 anos, mas defendia que partir tarde não impede que se chegue cedo, se se correr veloz pela vida.

Dona Olimpia corria veloz pela vida todos os dias das 17h30 às 19h30, duas horas de voo rasante por cima de ervas, calçadas, alcatrão, pedras, cócós de cão, stresses, ansiedades e outras agonias.

Quando lhe perguntavam os motivos, a resposta variava: "é para ser mais saudável", "é para não engordar mais", "é porque me ajuda a manter activa", "é porque me dá energia", "é porque me faz sentir melhor comigo própria", "é para ultrapassar os meus próprios limites", "é porque... é porque...".

Dona Olimpia correu muito e correu bem, em poucos anos perdeu a conta aos km que percorreu, estradas fora, bairros dentro. Um dia porém, Dona Olimpia cansou-se. Olhou à sua volta e percebeu que estava na Rússia, longe da sua família, amigos, conhecidos e vida. Ainda pensou em regressar a Portugal mas já que ali estava se calhar ainda tentava começar a fazer qualquer nova com a sua vida. E desde aí, Dona Olimpia nunca mais correu.

terça-feira, agosto 28, 2012

Um casal (a)típico


21:00. Sala da casa da Ana e do Jaime em Campo de Ourique. Ana tenta convencer Jaime a adoptar um gato... 

- Está fora de questão Ana. Não quero gatos cá em casa!!! Fim de assunto. 

- Mas Jaime, este gatinho perdeu a mãe e não tem ninguém.. Olha só para ele.. não achas amoroso? Que dizes a chamarmos-lhe Mitra?

- Mitra?!? A sério! Queres mesmo ter um gato chamado Mitra!?!.. e onde é que vais comprar a coleira dele? À Fubu?

- Oh, vá lá Jaime! Estou a falar a sério! 

- Também eu! Não quero um gato cá em casa. São falsos, não têm utilidade conhecida, defecam dentro de caixas, atraem germes e doenças... 

- Jaime, estás a sentir o mesmo que eu?

- Não, não, não, não, não, não! Sei bem o que estás a tentar fazer Ana. Não comeces!!!

- De que é que estás a falar? Estás a sentir este calor? A temperatura parece ter subido de repente. 

- Não sinto nada... a temperatura parece-me estar exactamente na mesma!! Os mesmos 23 graus que faziam quando começámos esta conversa... Anaaaa, veste imediatamente essa camisola!!

- Referes-te a esta camisola? (Ana agita a camisola na ponta do dedo indicador atirando-a depois à cara de Jaime). 

- Ana, sabes bem que isso é jogo sujo! Por favor vamos continuar a nossa conversa como dois adultos racionais. Estávamos a falar sobre os motivos porque não devemos adoptar um gato... a forma como largam pêlo... por favor volta a pôr esse soutien! Volta a pôr esse soutien Ana! Imploro-te!

- Oops... não adoras a nova gama de soutiens de abertura fácil da Women'sexiest? Parece que têm molas propulsoras... 

- Sim, de facto, a equipa de research&development da women'sexiest é uma das mais criativas do mercado de lingerie. Há que reconhecer isso...

- Jaime recorda-me outra vez porque é que não podemos ter um gato cá em casa?

- Não foi bem isso que eu disse.. 

- Ah não?...

- Não. O que eu disse foi que estava, completamente, fora de questão termos um gato, cá em casa, que não se chamasse Mitra!

- Amo-te tanto!

Fim

segunda-feira, agosto 20, 2012

Fim de férias

Dizia "bom dia" e eram cordas de guitarra à volta de uma fogueira o que lhe ressoava na garganta.
Dizia "bom dia" e entrava num corredor cinzento mas era ainda o sol que lhe dourava a pele e a brisa que lhe arrepiava os pelos do braço.
Dizia "bom dia" com ladrilhos brancos debaixo dos pés, sentindo um "crrraaaac craaaac" da areia morna.

Quando chegou ao seu lugar e calou a voz, sentiu o sabor do sal na boca, mas não era um mar a existir, eram duas lágrimas feitas gaivotas a desenharem caminhos de sede.

Hoje havia o ontem, amanhã não existe por detrás de um horizonte que não se vê.

Nas mãos as aventuras de estradas corridas, nos olhos as paisagens vistas, cada pedaço de pele transpirando a alguma forma de liberdade diferente desta daqui. Regressos feitos de ilusões, cada retorno é feito por alguém diferente de quem partiu, mudanças subtis e imperceptíveis, sonhos ganhos e horizontes despertos, ali, além, acolá, longe daqui.





quarta-feira, agosto 01, 2012

Coisas soltas

Uma lareira acesa enquanto chove à séria lá fora.
O cheiro a terra molhada.

Um cão a dormir com a cabeça à distância do braço.

O sol a deitar-se no mar enquanto e gente entre conversas com sweat-shirt vestidas.

Músicas antigas cantadas em coro desafinado aos gritos, com gente que não nos conhece a olhar.

Correr na rua entre as pessoas para chegar primeiro a qualquer sítio.

Dançar na rua só porque a música que vem do rádio do carro é boa que chegue.

Conversar numa esplanada com os pés em cima da cadeira da frente sem ninguém me chatear. Ter uma mini fresquinha na mão e montes de assuntos na manga.

Conversas soltas que começam com "gosto dessas calças" e acabam na tentativa de descoberta de toda a metafísica da vida e da morte.

Tardes lentas e quentes a ver passar os pássaros no céu azul.

Noites decoradas com estrelas e pontuadas por conversas, risadas e silêncios.

Livros. Muitos livros, todos os livros, praticamente qualquer livro.

Uma fotografia bem tirada, na altura certa. Por mim.

O olhar e abraço da amiga de Cáceres quando nos voltamos a ver.

As gargalhadas imparáveis e incontroláveis que acabam em lágrimas e dores de barriga.

A estrada vazia à frente a passar pelo carro com boa música. Com pessoas, acordadas ou a dormir, ou sem mais ninguém.


quinta-feira, julho 05, 2012

Zé António das meias

Chamavam-lhe Zé António das Meias porque o rapaz se chamava de facto Zé António e tinha uma obsessão na vida: saber o que acontece às meias que desaparecem na máquina de lavar.


Fora gozado na escola pelos seus colegas mas o Zé António sabia de cor que a questão não é de pouca importância. Estimava um gasto anual de milhões de euros em meias perdidas por mês, algo que poderia muito bem ajudar o governo a sair da crise. Se ao menos as meias não desaparecessem, quem sabe o dinheiro poupado não poderia servir para enviar alimentos para os carenciados que coitados, andam por esse mundo de pés descalços. Sem meias.


O Zé António tinha investigado estranhas teorias sobre como a fricção rotativa do tambor das máquinas poderia ser causador da abertura de mini-buracos negros espaciais por onde passariam mas meias perdidas. No fundo seria um vortex semelhante ao existente nas malas de senhoras, só que exclusivo de meias. A teoria revelou-se errada quando o Zé fez mais experiências com pedaços de tecidos semelhantes a meias, mesmo tamanho, igual textura, em que apenas as meias continuavam sistemáticamente a desaparecer.


De resto, o investigador atento, percebe à partida que a resposta não poderia estar ai. Se esta teoria estivesse correcta, ambas as meias do mesmo par teriam a mesma adesão à energia de sucção causada pelo tambor da máquina.


Ao abandonar esta teoria, o Zé António não abandonou a sua obsessão. Algo tinha que passar com as meias, e vá de se sentar todos os dias à hora da lavagem da máquina. De lanterna em punho não perdia de vista o tambor rotativo - nem buraco negro nem outra explicação. A sua cabeça rodopiava com possibilidades, um gnomo da peúga talvez, à procura de sacos para carregar as suas moedas de ouro? A fada dos dentes, sem alternativa melhor para guardar tanto dente de leite? Um ladrão perneta e fuinha, que se afinal não precisava de pares de meias porque as haveria de comprar?


Cresceu com estas questões existenciais à roda e, verdade seja dita, não lhe encontrou solução. Encontrou sim oportunidade de negócio, o Zé António é hoje dono da bem sucedida cadeia de lojas "Meia desemparelhada" onde toda e qualquer pessoa pode encontrar meias de todos os tamanhos e feitios para complementar a meia solitária lá de casa.





segunda-feira, junho 18, 2012

acende mais um cigarro enquanto a lua se passeia no céu. de um lado para o outro, acompanhada de fumo viciado que não vê. soma mais uma noite às outras em que existiu de olhos abertos, a pensar na inexistência inviável. soma mais uma canção àquelas que quando tocam fazem doer a pele.
acende mais um cigarro e vê as ruas vazias, marcadas pela vida do dia, esquecidas na morte da noite. daqui a pouco há que recomeçar, mas não se lembra o quê ou como se faz.
houve uma altura em que ainda assim, estes eram momentos de alívio, mas agora somam-se as preocupações - e amanhã como acordo, com que cara acordo, eu que já não sei que cara tenho, que cara visto, como abro olhos olhos, como escrevo os pontos finais a meio dos textos, como digo sim com os sins entalados na garganta.

nos entretantos desenha formas fluídas com o fumo do cigarro. fluidez do fumo a contrariar o peso dos ombros, dos braços, dos dedos que seguram um vicio que ha muito lhe deixa a cabeça pesada, o corpo pesado.

"devia ser outra hora aqui" e vê um carro perdido que passa, perdido nas suas próprias histórias, desconhecendo a existência do seu cigarro, deixando-a na inexistência que procurava e que tampouco lhe traz alivio.



segunda-feira, junho 11, 2012

Dizia: a miopia é uma soda, e bebia-a de um trago, sabendo que não era dos olhos que falava. 


Dizia: há caminhos estreitos que vão desaguar em rios, e olhava a chuva sabendo que não era das poças enlameadas que falava.

Ás vezes sentava-se na relva e ficava com o fundilho das calças esverdeadas. Pensava que era uma forma de trazer o cheiro da primavera para casa mas nunca conseguiu nada mais do que dois ou três sermões irritados, em versão de "olha para isto, sujas-me os sofás e ainda me dás uma trabalheira para lavar essas calças". Foi assim que descobriu que as calças se lavavam mas não ganhou curiosidade pelo processo. O mundo a chatear com as rotinas comezinhas de afazeres, mas há muito que lhe nasciam penas no corpo e queria era dedicar-se a outra coisa. Talvez à agricultura de sonhos, talvez à pesca de sorrisos, talvez à criação de nuvens, qualquer outra coisa que não à lavagem de calças. Um dia decidiu-se a coleccionar cheiros, no dia seguinte quis cozinhar solidões, ao terceiro dia pensou em construções de idiossincrasias e ao quarto teve mesmo que fazer uma máquina de roupa, estendê-la e passá-la a ferro. E o pior não era isso, o pior eram as burocracias que lhe exigiam: que fazes parte do mundo e não podes andar a voar a 20cm do chão. Pousa os pés e vai preencher uma declaração de vida acinzentada, não te esqueças do imposto de alegria, vá que depois tens que lhe juntar o anexo de maturidade responsável e ainda a declaração de rendimentos com saldo negativo de felicidade.

Por isso, comia muitas vezes chocolates, na tentativa de se lhe adocicar as esperanças que começavam a definhar em poças enlameadas onde não havia reflexos possíveis. 


sexta-feira, maio 04, 2012

Relíquias e tesouros

No meu bairro havia um rapaz que tinha uma lágrima guardada no bolso das calças. Foi há mais de 20 anos, mas o outro dia estava a olhar para ti e lembrei-me. Era o Zé dos Berlindes porque era o melhor a jogar aos berlindes lá do bairro. Por causa disso foi ganhando berlindes e mais troféus. Um dia deram-lhe uma lágrima de verdade - foi uma troca. O Zé ganhou o berlinde mas o rapaz que o perdeu pediu--lhe, "Oh Zé, deixa-me ficar com o berlinde e dou-te outra coisa. É o meu bila da sorte, sem este nunca mais ganho nenhum" e o Zé deixou porque sentiu na voz do outro o peso da desgraça iminente. O outro estendeu-lhe uma lágrima e o Zé inspeccionou-a com especial atenção. Virou-a de todos os lados, pô-la de frente para o sol para a ver bem e por fim disse que tá bem, podia ser, e guardou-a no bolso.

O Zè era meu amigo e mais tarde pedi-lhe para a ver e ele todo contente com o seu troféu lá me deixou. Não sem antes me avisar, tu vê lá não a apertes com muita força que ela estraga-se, mas também não a deixes cair que ainda se parte ou se gasta ou se perde no meio do chão. E estendeu-ma, entre o polegar e o indicador, e eu com muito medo lá lhe peguei e virei-a contra o sol para lhe ver os raios por de dentro. Viam-se também outras coisas misturadas, pedaços soltos da história que a fez - todas as lágrimas trazem as marcas das histórias que as criaram.

O tempo passou-se e eu saí do bairro, nunca mais vi o Zé, vim para a cidade grande aprender a fazer outras coisas. E nunca mais me lembrei nem voltei a jogar berlinde.  Também nunca mais voltei a segurar uma lágrima com o polegar e o indicador mas depois, depois apareceste tu e descobri que afinal ainda sei como elas se seguram, como se viram de frente para o sol para olhar para dentro delas e como se faz para as guardar no bolso de trás das calças. E andar com elas para todo o lado, com medo de as perder ou estragar, mas sempre guardadas à mão para se olhar de novo quando se tem tempo.

quarta-feira, maio 02, 2012

querido diário

9:00 - deslarga.
9:05 - deslarga mesmo.
9:10 - se não consegues deslargar, vai fazer outra coisa qualquer.
(como, aprender gramática. discutir que des-largar seria o oposto a largar, tal como des-cuidar é o oposto a cuidar)

11:17 - olha em volta sem suspiros. o mundo é para a frente, não se dá corda aos relógios ao contrário que se estragam as máquinas.

12:29 - sente saudade do tempo que passou. sente o tempo que passou, com saudade. sente o tempo nas mãos, a saudade a passar. o toque que te segurou a mão a perder o calor. desvanecer-se. para que outras coisas se vanescam?

12:30 - à procura de novos conceitos agora. só por piada.

12:34 - conceptualização sem materialização, a lógica não existe no mundo real. um sorriso.

13:12 - vais ter saudades do tempo de agora - hipótese que faz tremer. não vou nada, não é possível. não quero. shhht, cala-te e olha o presente como se fosse passado - é circular, anda lá, assume de vez. todas as vezes seguidas. rocambolesco. oi? rucambulesco. oi? shhht, cala-te.

14:12 - perdes o controlo outra vez. em histeria agora. porque o mundo é para a frente e vais sentir saudades disto mas não queres nem saber, só viver, tudo de uma vez. todas as possibilidades não cumpridas, todos os "eus" que poderias ter sido, tudo o que poderias ter agarrado. e agarras uma cerveja fresca para te fazer abrandar, até parar.

15:22 - qualidade de vida embalada por palavras que ouves mas não escutas.

16:15 - nunca serão possíveis, todas as possibilidades do mundo que não escutas. deslarga de novo. inventa, mistura, recria. para fingir que sim. para fingir esquisito. fala esquisito a fingir que sabes do que falas. desdenha dos arquétipos e das cargas mitológicas, finge que só tu sabes do rio de palavras que corre, atribui valor aos artigos e aos adventos - todos nas mesmas prateleiras. faz pior, encena o dramatismo pseudo cosmopolita a fundar alicerces performativos desenraizadamente grostescos, sempre de forma espontânea.

16:16 - ri-te com todos os dentes que tens na boca, os que são teus e os que são mais teus porque pagaste por eles e os escolheste.
16:17 - dá-te conta que és uma pessoa que escolheu os dentes com que sorri ao mundo. e ri-te disso.

18:25 - apercebe-te que é tarde demais, porque ainda nada está pronto.

19:00 - pára para fugir.

22:00 - quietude fugidia, sem saber o que quer isso dizer.
22:05 - ai.
22:06 - ai ai.
22:08 - decides mudar de vida.
22:09 - fazes os mesmos erros de sempre.
22:10 - decides mudar de vida.
22:11 - fazes os mesmos erros de sempre.
22:12 - atinge-te em cheio - não há regresso possível nem fuga provável.

00:15 - decide re-escrever o futuro e acaba na prisão de todos os dias.

quarta-feira, abril 25, 2012

Dona Eva

Dona Eva olhava angustiada para a balança,
A balança não mente mas mente dona Eva quando o médico lhe pergunta. Não se fica pela pergunta, suba lá dona Eva, e o ódio que já guarda pelos números aumenta. Sustém a respiração mas os números não baixam, engordam no visor ao mesmo ritmo que dona Eva engorda na barriga.
137 kilos, Dona Eva, em vez de dois a menos temos dois a mais, Dona Eva. Solta-se-lhe um suspiro, se o médico soubesse o que lhe custa! O mal está nesta sociedade, em todo lado chocolates apetitosos, bonbons pouco decorosos, rebuçados despudorados e outra vez os dedos lambuzados.

Ah, dona Eva, conter os apetites custa-lhe o mesmo que conter esse pneu por debaixo da camisola mandada fazer à medida. Anda mais descansado o marido, ao fim de 10 anos de casados encontra por fim a paz de que a única tentação seja gelado de limão.

quarta-feira, abril 04, 2012

Das vidas de outras vidas

Andavam em escavações, diziam, quando na verdade apenas esgafatunhavam aqui e ali. Usavam normalmente armadilharia pesada: pás, enxadas, perguntas certeiras. Mas outras vezes usavam apenas os dedos e os olhos. À procura de alguma coisa, à procura de qualquer coisa, e andavam naquilo dia e noite. Os dedos duros e doridos, bolhas a rebentar, um sulco de esforço por debaixo das unhas, uns calos altos por entre os descansos do dia. Os descansos do dia - a noite. Queriam-na pacífica mas vá-se lá saber dos desígnios estrelares, eram cheias de sonhos com buracos a fecharem-se, esforços redobrados, escava daqui e dali, retira daqui e dali, carrega daqui pr'ali. 

Podia pensar-se que sonhavam com qualquer objectivo mais alto e maior. Talvez chegar ao outro lado do mundo, talvez construir uma passagem que permitisse que os extremos se tocassem, talvez encontrar uma verdade mais quente e verdadeira, presa e logo colada ali ao centro da terra. Podia pensar-se nessas coisas todas, mas nenhuma era certa hoje em dia. Já haviam sido, agora não. Agora era escavar pela ânsia de escavar, esgafatunhar como quem não sabe nem quer saber fazer mais nada, o desígnio de quem se esqueceu de outros propósitos e horizontes. À procura, claro, de algo. De alguma coisa. De qualquer coisa. Que teimava em não se materializar por baixo da terra, da lama, dos sonhos, da esperança, de todas as porcarias em que escavavam.

segunda-feira, janeiro 09, 2012