Nasceu com um
bloqueio no coração, sabes? Ao principio ninguém deu conta, era só um bebe que
sorria pouco mas com o tempo aprendeu as alturas em que devia sorrir. Os
momentos para o sorriso. E o bloqueio foi passando despercebido, tornou-se pior
na adolescência, pelo menos acho que ela começou a suspeitar de alguma coisa
diferente, quando lia poesia e se prendia nas métricas ou quando as amigas
sussurravam em histéricos risinhos o nome do rapazinho que lhes corava as
bochechas. Aprendeu a fazer parecido, a conhecer os momentos certos para este
ou aquele suspiro, imitava na perfeição a vergonha mal disfarçada mas nunca
conseguiu que as bochechas se lhe corassem. Também não chegou a ser preciso,
nunca houve observador tao atento que lhe estranhasse a falta desse sinal
quando os outros abundavam. Nem toda a gente cora, diria se lhe perguntassem,
nem toda a gente chora, também haveria dito se lhe perguntassem mas ainda bem
que nao perguntaram porque se calhar esta afirmação levantaria maior
estranheza.
Nasceu com um
bloqueio no coração, sabes? Acho que nunca ninguém deu conta mas ela sabia que
havia algo de pouco natural na forma como antecipava os momentos para falar ou
calar, na mestria como mostrava a reacção certa, no momento certo, quase como
ensaiado. Não fazia colecções de muitas coisas, apenas de sinais disto ou
daquilo. Caminhos lógicos para chegar a conclusões emocionais, decisões
ponderadas para demonstrar impulsividade, surpresa ensaiada para não defraudar
expectativas e alguns silêncios escondidos nas quatro paredes de sua casa para
quando se cansava dos teatros dos dias.
Não sei se alguma
vez foi realmente feliz. Quer dizer, sei que gostava de algumas coisas, gostava
de andar de bicicleta rua abaixo, especialmente no final do verão quando acabavam
de por asfalto novo que nunca durava ate ao ano seguinte. Gostava do cinema ao
ar livre nas noites quentes, que a câmara montava no jardim. Eram poucos os
momentos em que os olhos brilhavam mas suponho que mesmo com um bloqueio no
coração possas sentir o vento na cara ou sonhar em ser outra coisa qualquer.