Já fomos, já deixamos de ser, talvez estejamos de volta. Poderá ser o regresso do mito. O mito que nunca o foi.
quarta-feira, junho 21, 2017
reflexões sobre as reações a Pedrógão Grande
As primeiras notícias sobre Pedrógão traziam já a incompreensibilidade do número de mortos e os dedos indicadores de meio mundo erguiam-se mais ou menos ao acaso. Nas primeiras horas foram contra os criminosos do fogo posto, depois contra os bombeiros, depois contra a proteção civil. Pelo menos foi assim que a minha timeline de facebook se organizou. As horas seguintes trouxeram números a aumentar, na mesma estrada, e o medo de que chegando a mais aldeias e casas dispersas poderiam aumentar ainda mais. Trouxeram também algumas respostas, que não foi fogo posto, que os bombeiros estão articulados e vêm do país inteiro e arredores, que a proteção civil fez tudo direitinho e continua a fazer. O presidente, o segundo do governo a chegar ao posto de comando, trouxe calma ao secretário de estado que já lá estava, ajudou com certeza a organizar, falou até ao telefone com pessoas que se recusavam a sair das suas casas. Ao mesmo tempo havia já quem lhe apontava o dedo, os abracinhos não chegam Sr. Presidente.
Agora, finalmente, reuniu-se mais ou menos consenso sobre para onde apontar os indicadores. São os eucaliptos, é a falta de limpeza das matas, é o governo que não aplica bem a lei, é o governo anterior, é este. É tudo, é qualquer coisa, é o pânico e o desnorteio. Somos deuses, não nos podemos permitir que a culpa morra solteira porque tem que haver culpa, tem que haver coisas que se possam fazer melhor para garantir que nunca mais, nunca mais, nunca mais, algo de semelhantes contornos possa acontecer neste país. É a humanidade a evoluir, é Portugal a evoluir.
As imagens, os cenários, o que se viu e ouviu, tudo coisas que vão muito para além daquilo que hoje em dia, o homem civilizado tem a capacidade de aguentar. Um horror mais próximo de um teatro de guerra do que de um país de primeiro mundo. Vem daí a urgência em apontar os dedos, em encontrar culpados, em criar uma sensação - falsa ou real - de que jamais algo semelhante se possa repetir. Ninguém, português ou residente em portugal, deveria sequer pensar naquele horror, quanto mais vivê-lo, quanto mais morrer-se-lhe assim.
A tentativa de impedir que tal volte a acontecer não está errada, claro. O apontar de dedo, ligeiro e pronto, é pura reação de pânico e horror. E é assim que um país evoluiu, melhora, se torna mais eficaz. No entanto, o raciocínio por detrás que é feito tem na sua semente um control que não sei se é real. Causas naturais ou humanas, tanto faz. O governo, o país, nós, nós temos o poder de controlar tudo, de impedir tudo, de conseguir tudo, desde que aloquemos os recursos, a atenção e os dedos em riste para os problemas. Nós somos os novos deuses, que não sofremos flagelos. Cometemos erros que se tornam desastres, não existem desastres em si. Só a nossa forma de lidar com eles.
É melhor não pensar, é melhor apontar o dedo e acusar alguém, algo, qualquer coisa. Tudo para nos fazer esquecer esta sensação de fragilidade. É que se ainda não somos deuses, vamos sê-los muito em breve. Temos a certeza, com todos os inadmissíveis que acusamos.
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