terça-feira, fevereiro 04, 2014

D. Litéria

Dona Litéria dizia "relva" e cuspia pedacinhos verdes entre as palavras, dizia "céu" e um pedacinho de baba azulada a escorrer-lhe pelo canto da boca que limpava apressada com as costas da mão," ai que grande peso que carrego", suspirava, e logo os joelhos se dobravam e os ombros descaíam.

Dona Litéria dizia que gostava de beber da sabedoria dos antigos e logo se engasgava a meio da frase, pirulito desprevenido como um gole de mar, ah, tanto mar que há nas ilhas que são os homens e Dona Litéria a ser ilha engasgada, a tossir que nem um cão e a abanar a cauda, pode um piano abanar a cauda Dona Litéria? e Dona Litéria tocava música desafinada enquanto pensava nos desafinos da vida que são os desencontros e Dona Litéria já estava atrasada para o próximo, aquele que foi com o outro que haveria de ser o seu marido, risonho e habituado às esquisitices de Dona Litéria. A relação? A relação foi fácil, ela apaixonou-se no momento em que recebeu o mapa com os caminhos para o seu coração e um aviso, "vê lá não descarriles" e Dona Litéria a ser comboio fiável, sempre seguindo os caminhos trilhados, sempre na linha Dona Litéria e mesmo assim às vezes o marido zangava-se, "são facadas no meu coração!" e logo Dona Litéria ia correndo buscar o algodão com betadine e voltava para ficar baralhada, não vejo nada, não vejo nada.

Dona Litéria enviuvou num dia e demorou exactamente 5 dias, 3 horas e 27 minutos até morrer de saudade, claro.

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