Dona Brites nascera de parto planeado, um bébé desejado e assinalado no calendário dos grandes marcos da vida, "primeiro casar, depois 1 ano para nós, empregos estáveis, a primeira criança, ao fim de 2 anos a segunda, mudar para uma casa maior, ter a terceira". E a vida que se desenhara no papel foi-se construindo a par e passo, sem altercações de maior, sem tempestades do lado de cá do horizonte e poucas vezes as gaivotas vinham a terra.
Dona Brites cresceu por isso ponderada e sensata, cheia de cautelas e cuidados, um senso que aos 5 anos de idade lhe punha um dedo espetado no ar enquanto dizia cheia de certezas aquilo que ela própria podia ou não fazer. "Oh mãe, não achas que já é hora de me ires por a dormir?" inquiria Dona Brites de sobrancelha carregada, "Oh mãe, hoje não devia ser peixe em vez de carne?".
Ficou conhecida e reconhecida pelos "nãos" que distribuía, Dona Brites sempre assertiva, "tu não podes fazer isso, tu não deves fazer aquilo, isto é mau, aquilo é bom, tu vê lá nas que te metes, eu se fosse a ti não fazia isso".
Cresceu rápido Dona Brites, sempre seguindo as tendências da moda sem exageros - as calças à boca de sino eram de sininho, as saias curtinhas eram curtas, os vestidos balão eram enchidos sem fôlego, os estampados de cores suaves.
Sem surpresas Dona Brites casou na altura devida com o homem certo, teve 3 filhos devidamente espaçados e adequadamente alegrados, e depois de muitos natais abençoados, festas de anos e baptizados, Dona Brites morreu sensatamente durante a noite, sem acordar, sem gritos, estremecimentos, dor ou até consciência de si. Na lápide do cemitério escreveram em letras bonitas, "Aqui jaz Dona Brites, esposa dedicada e mãe amada, que desta vida nada levou nem muitas marcas deixou".
Já fomos, já deixamos de ser, talvez estejamos de volta. Poderá ser o regresso do mito. O mito que nunca o foi.
quarta-feira, março 26, 2014
segunda-feira, março 24, 2014
Tem um sorriso a mais de que não precise?
Andava pelas ruas com olhos e bolsos vazios, mendigava para não roubar, dizia a quem o quisesse ouvir, mas dizia pouco entre as gentes apressadas de telemóveis nas mãos, músicas nos carros, vidros fechados. "Tem um sorriso a mais de que não precise?" perguntava enquanto batia nas janelas, acenavam-lhe que não por detrás dos vidros dos carros, por detrás dos vidros escuros dos óculos, "tem um abraço a mais que possa dispensar?" e nem olhavam para ele enquanto passavam apressados para os seus afazeres, "tem uma festinha na cara que me possa dar?, um sorrisinho, vá lá amigo, não mendigo porque gosto, é porque preciso..." e logo o senhor mudava de lugar na paragem do autocarro, diziam que não e afastavam-se, e ele por ai continuava, de bolsos vazios a mendigar um pedacinho de amor.
terça-feira, março 11, 2014
A menina que comia arco-íris
Não tinha cor preferida, gostava do amarelo e do verde, do azul, do cinzento, do rosa ou vermelho, a qualquer hora, em qualquer dia. Isto era o que ela explicava quando lhe perguntavam de ar assombrado, mas a sério que comes arco-íris?
Vinha-lhe de pequena esta estranha mania - e são deliciosos, devias provar! - e mesmo que os pais lhe ralhassem de nada servia. Mas oh mãe, eu gosto tanto, eu sei querida mas daqui a nada vamos almoçar e depois não tens fome, e de olhos desiludidos limpava o azul do lábio inferior e guardava o resto do amarelo para comer à sobremesa.
Os amigos perguntavam-lhe, mas tu não sabes que o bom do arco-íris é que podes encontrar um pote de ouro no fim? e a menina sorria e dizia que tu é que não sabes o bom do arco-íris, é o começo e o meio e o fim... o fim só serve para deixar um gosto doce na boca e a gente com vontade de comer mais.
Quem não a conhecia tomava-a muitas vezes por pintora ou artista de algum género, manchas de cores várias nas mãos e às vezes uma ou outra nódoa na camisola - olha sujaste-te a pintar hoje na escola - e ela nem negava que às vezes os arco-íris pingavam e nem sempre havia um guardanapo no bolso para a ocasião.
Foi quando soube desta história que percebi de onde lhe vinha o brilho nos olhos e a alegria que trazia nos bolsos e agora quando a vejo de vez em quando toda deliciada, a mastigar discretamente e sem barulho, não consigo não sorrir porque já me contou do seu segredo.
Vinha-lhe de pequena esta estranha mania - e são deliciosos, devias provar! - e mesmo que os pais lhe ralhassem de nada servia. Mas oh mãe, eu gosto tanto, eu sei querida mas daqui a nada vamos almoçar e depois não tens fome, e de olhos desiludidos limpava o azul do lábio inferior e guardava o resto do amarelo para comer à sobremesa.
Os amigos perguntavam-lhe, mas tu não sabes que o bom do arco-íris é que podes encontrar um pote de ouro no fim? e a menina sorria e dizia que tu é que não sabes o bom do arco-íris, é o começo e o meio e o fim... o fim só serve para deixar um gosto doce na boca e a gente com vontade de comer mais.
Quem não a conhecia tomava-a muitas vezes por pintora ou artista de algum género, manchas de cores várias nas mãos e às vezes uma ou outra nódoa na camisola - olha sujaste-te a pintar hoje na escola - e ela nem negava que às vezes os arco-íris pingavam e nem sempre havia um guardanapo no bolso para a ocasião.
Foi quando soube desta história que percebi de onde lhe vinha o brilho nos olhos e a alegria que trazia nos bolsos e agora quando a vejo de vez em quando toda deliciada, a mastigar discretamente e sem barulho, não consigo não sorrir porque já me contou do seu segredo.
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