Ele era boa pessoa,
fazia os updates automáticos quando o tablet pedia, removia sempre o software em segurança, tinha uma conta poupança onde punha re-ligio-sa-men-te todos os meses uns bons 50 euros. Pedia recibos nos cafés, ia votar sempre que era preciso - desde que não estivesse a chover muito ou se as votações calhassem em período de férias, claro. Há muito que tinha deixado de discutir política e mesmo futebol discutia "com jeitinho", isto é, sem fazer muito alarido. Vá, uma laracha ou outra, um ou outro gozo com os amigos do clube rival,
mas eles,
eles acabavam sempre por ir buscar o campeonato de há 5 anos, ou outro qualquer anterior, e mais datas e nomes de jogadores que o Rui nem se lembrava. Nessas alturas, encolhia os ombros com meio sorriso e largava a conversa.
Estava inscrito num ginásio, um dia destes havia de voltar a começar a ir; quando se lembrava em algumas manhãs, até bebia um copo de água de um trago - tinha lido que fazia bem ao corpo, não custava tentar.
Gostava pouco de mudanças - da última vez que tinha sido obrigado a mudar de casa, durante um ano inteiro ia, de vez em quando, parar à porta do prédio antigo. Só quando a chave não funcionava na entrada cá de baixo é que se lembrava que já não morava ali e arrepiava caminho para a casa certa. "Que tontice" pensava, com um breve abanar de cabeça mas sem mais julgamento do que esses 3 segundos que lhe durava o pensamento. Às vezes ia jantar fora, normalmente com a equipa do trabalho, e depois um copo ao bairro alto. Reparava nas miúdas e nas mais graúdas que por lá rondavam mas era parco a fazer conversa. Já não ia para novo e as aventuras de uma noite que tivera eram mais que suficientes para se gabar a quem o quisesse ouvir.
Hoje em dia, nessas aventuras, até o aborrecia um bocado a manhã seguinte: roupa fora do sítio e lençóis com restos de maquilhagem. E ter que arrumar a casa e lavar os lençóis mesmo que não fosse dia disso, não, já tinha outra idade, já tinha outras prioridades, pensava para si mesmo. Além disso, aquela nova colega do escritório... ele achava que havia ali uma química. Nova - que já não era bem nova - fazia parte da outra equipa vai para dois anos; nunca tinham propriamente feito nada fora das responsabilidades laborais, nem trocado emails ou mensagens sobre outros temas além dos que lhes eram directamente temas profissionais. Mas às vezes, antes ou depois de uma reunião, ela fazia um bocadinho de conversa sobre o fim de semana seguinte e por duas vezes, quando ela passou por ele a caminho da impressora, lhe pôs a mão no ombro. Não precisava mais espaço para passar, mas mesmo assim pôs. Havia ali uma química, ele sabia, mas não que fosse de fazer algo por isso. As coisas haveriam de acontecer naturalmente, se tivessem que acontecer. E enquanto aconteciam ou não, acontecia a vida a escorregar por entre os dias mais ou menos organizados. Se lhe perguntassem se era feliz diria que sim, vá, normalmente feliz, afinal de contas que razão tinha para ser infeliz? Nenhuma, portando deveria ser feliz, sim.
*publicado em primeira mao aqui: https://quemcontaumconto.pt/o-rui-e-os-dias