quinta-feira, julho 31, 2025

Dona Laura

Dona Laura sabia, porque sua mãe muito repetia, o que o seu nome significava: a vitoriosa, a triunfadora. Dona Laura ficava vaidosa quando sua mãe lhe escovava os lisos cabelos compridos. Ela, menina, inspirava de costas direitas, pronta a triunfar na vida. Quarenta anos depois, olhava para o espelho e fazia o mesmo movimento direito à procura da pose de triunfo. Sempre fora menina ajuizada, estudante média-para-o-boa, nunca tinha perdido um ano do curso de letras que escolhera. Casara com um colega da universidade - o seu segundo namorado da vida inteira - e foram viver para a terra dele, o que não era um problema porque estavam apenas a duas horas da sua. Aos fins-de-semana até dava para ir e voltar. Dava para ir e voltar agora, no princípio passavam lá o fim de semana inteiro mas ele tinha cada vez menos paciência para isso, da mesma maneira que tinha cada vez menos paciência para programas com ela. As visitas a casa a encurtar e as semanas entre elas a aumentar, mas que diferença fazia, afinal os pais dela tinham mais perto a irmã, estavam apoiados e confortados e tampouco lho cobravam. Já dona Laura sabia que tinha uma boa vida entre os dois salários e os poucos gastos, um trabalho confortável para a câmara municipal, o marido como braço direito na empresa de seu pai - sem grandes riscos, luxos ou aventuras mas estável e seguro, a assegurar o futuro. Para ser sincera, Dona Laura, a vitoriosa, gostaria se ás vezes fizessem outras coisas, sei lá, mais viagens, jantares ao som das próprias conversas em vez de ao som da televisão… um gesto de romantismo dele - mas que não fosse o de irem almoçar fora ao domingo, era sempre ao mesmo restaurante, isso ainda conta como romantismo? Ele dizia que sim - meio impaciente, sem a olhar nos olhos - o que queres agora ao fim de tantos anos juntos, e ela dizia para si mesma que o casamento é isto mesmo, que estou a ser exigente e irrealista, ele tem lá as preocupações dele e da empresa e além disso nós temos esta bonita história de 23 anos juntos… O mal são as comédias românticas que passam na televisão, que não sei porquê mas às vezes põem-me a pensar no Júlio, o meu primeiro namorado, que apanhava malvas no quintal da vizinha sempre que vinha ver de mim, o que será feito dele? Ah mas Dona Laura nem se atrevia a suspirar, depressa tentava acabar com estas divagações nostálgicas da sua cabeça, concluindo que decerto o Júlio está gordo e desarranjado, era vaidoso mas não tinha gosto nenhum, andará lá na sua vida, tanto faz, eu é que tenho que ir ao cabeleireiro, e na volta passar no supermercado para comprar café, a ver se não me esqueço do que o adjunto da câmara falou na sexta-feira passada... e assim seguia rapidamente para a sua rotina, Dona Laura, a vitoriosa, a triunfadora, que não sabia explicar esta sensação de vazio que de vez em quando a enchia.

sexta-feira, julho 11, 2025

Sr. Jacinto

 Nas rugas profundas da cara do Sr. Jacinto podiam antever-se as preocupações que lhe haviam moldado

a vida, as preocupações que lhe serviram de motivação para se levantar ao mesmo tempo do sol e sair

de casa dia após dia - de semana ou fim de semana - sempre a dar vazão a mais um quintal que

precisasse de ser ajeitado; a uma  sebe de ramos desalinhados que precisasse de ser endireitada; a uma

relva amarelada e com peladas que precisasse de ser acarinhada. Era assim o Sr. Jacinto, um trabalhador

empenhado e respeitado, que sabia mais de jardinagem que qualquer outro e assim havia indo

construíndo o seu caminho - mesmo quando outras empresas mais modernas começaram a aparecer. A

razão era simples e bonita: o Sr. Jacinto havia casado com a Maria, a rapariga mais delicada da rua e que

até despertou a paixão pré-adolescente do Sr. Dr. Francisco da Palma e Matos. Coisas de miúdos, é

certo,  mas também o foi o facto de que a Dona Maria não se tinha deslumbrado com o filho dos

senhores. Claro que os senhores, ao primeiro sinal das palpitações do filho mais velho o enviaram

apressadamente para um colégio na capital e Maria, sempre recatada e delicada, nem sequer se fora

despedir dele. Anos mais tarde, quando ela aceitou namorar com o Sr. Jacinto, este preocupou-se pois

sabia que lhe caberia a ele dar-lhe uma vida digna e com condições, que até lhe permitissem comprar

dois ou três lenços novos quando ela quisesse.

Quando casaram, o Sr. Jacinto já havia conseguido uma casinha asseada, na mesma rua em que tantas

vezes a seguira com o olhar quando a mãe de Maria a vinha chamar para o jantar. Logo no primeiro ano

de casados ela deu-lhe um belo rapagão de 3 kilos e tal, com choro tão forte como o de um bezerro. E o

Sr. Jacinto preocupou-se, que agora eram três e depois passaram a 4 e a seguir chegaram a 5, a mais

nova a sua alegria, tão parecida com a mãe que era. De físico, de personalidade, tinha maiores

ambições. Ora com a família a crescer, o Sr. Jacinto preocupava-se ainda mais e trabalhava mais,

justamente o suficiente para assegurar que os três filhos pudessem crescer, estudar e fazerem-se à vida,

nas mesmas condições e com o mesmo conforto que todos os outros de famílias mais abastadas. Ou

quase. Certo era que os três estavam na capital, só a mais nova se tinha licenciado, mas os três bem

empregado. O mais velho era eletricista, o do meio estava na construção civil, e ela trabalhava numa

grande empresa de estrangeiros. Falava línguas, vestia de negócios, andava sempre pintada e arranjada.

Os três tinham casado, já havia netos que vinham de vez em quando, mas apesar da família a crescer, a

casa ia ficando cada vez mais vazia. Especialmente depois da morte da Maria, os miúdos vinham ainda

menos, os netos iam crescendo longe do olhar do avô. E o Sr. Jacinto, que outrora trabalhava por

preocupações, agora tinha que explicar ás novas clientes que não, que não se ia reformar, que era

mesmo das flores que gostava e que portanto para o ano ainda estaria disponível. Como no ano

passado, e todos os outros antes desse.