quarta-feira, janeiro 05, 2011

Dona Gardênia e sua borboleta

Dona Gardênia tinha o espírito primaveril reflectido nos olhos azul-águados e envolto no cheiro florescido dos seus cabelos longos.



Quando passava nos corredores, o perfume que usava por lá ficava, muito após a sua passagem. Pairava no ar e paráva quem por lá andava. Uns reconheciam-no imediatamente, outros abriam as narinas com olhos de admiração e sobrancelhas de espanto.



Dona Gardênia de sorriso fácil, escondia em sua casa um tesouro pouco secreto. "A minha paixão desde criança", dizia enquanto mostrava uma enorme colecção de borboletas. Havia-as de todas as cores, tamanhos e feitios. Cuidadosamente espetadas em alfinetes, de asas bem abertas, de cores e padrões mais ou menos definidos, de olhos secos e vazios. Era a sua amada colecção de cadáveres de borboletas.



Numa caixa mais pequena, guardava as mais raras e belas. Azuis, vermelhas, laranjas, verdes. De círculos nas asas, simétricas - "para simularem olhos de predadores maiores, é uma técnica de defesa da natureza", explicava Dona Gardênia, de beiços embevecidos, de olhos humedecidos.



Dona Gardênia tinha também álbuns cheios de fotos - de expedições e outras loucuras, pelas Áfricas, Ásias, Américas, Europas. Continentes onde havia andado, de botas altas castanhas, coletes largos verdes, olhos argutos esfomeados e redes variadas à mão. A farda da silenciosa e lenta caça de novos exemplares coleccionáveis.



Havia uma coisa curiosa, na caixa mais pequena das borboletas encantadas - um espaço vazio, um alfinete sem cadáver por baixo, um corpo ausente. Uma borboleta por preencher, era a que faltava na sua colecção. Uma e apenas uma. Já não era nova, Dona Gardênia, mas sempre tinha sido ambiciosa. Não iria deixar a colecção inacabada, seria a sua última expedição, mas seria também a borboleta mais valiosa. E com a vantagem que, desta vez, não seria preciso viajar para muito longe. A noite já estava escolhida e seria precisamente hoje. Dentro de duas linhas, para ser mais precisa.

Quando Dona Gardênia achou que faltava pouco para a caçada da última e mais valiosa borboleta, levantou-se calmamente do sofá, sem desligar a televisão. Os passos entre a sala e o quarto foram seguros e calmos, a forma de vestir também. Não iria de botas castanhas e colete verde, a borboleta mais especial não habitava a mesma natureza cheia de vida onde tinha colectado as restantes de sua colecção. Era preta a farda desta noite. Confortável, sem ser larga, sapatos silenciosos, cabelos longos apanhados por baixo de um gorro de preta lã. Dona Gardênia estava pronta para ser a única detentora do mundo da espécie de borboletas mais rara.

Lanterna numa mão, martelo na outra. Ao ver-se ao espelho, sorriu. Dona Gardênia parecia um ladrão e não uma hábil e ambiciosa coleccionadora de insectos coloridos.

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A polícia bateu-lhe à porta logo pela manhã. A porta não foi aberta, seguiu-se o arrombamento, 10 homens fardados empunhando pistolas a correrem pela sala, a correrem até ao quarto, a chegarem ao escritório. Dona Gardênia, sem gorro nem cabelo alinhado, sentada no chão. A cara marcada por lágrimas, as mãos e a roupa cheias de sangue, a caixa das borboletas mais preciosas ao lado, caída, meia destruída, desalinhada.

Foi presa e condenada.
Prisão perpétua pelo homícidio de um casal de jovens namorados, com requintes de malvadez. Que os tinha estripado, arrancado o estômago e os intestinos, revolto e aberto orgãos, na busca desesperada de umas tais "borboletas no estômago dos apaixonados".

Não as encontrou e a sua colecção ficou para sempre inacabada.

2 comentários:

Ana disse...

que história mais triste... nunca tinha lido tamanha solidao.

tope disse...

depressivo mas surpreendente.