terça-feira, junho 28, 2011

mini-conto

Aos 2 anos já se entretinha com as próprias mãos, enrolava sorrisos entre os dedos deitada no berço. Aos 3 começou a brincar com o mundo das cores da alegria, em joguinhos e plataformas de marca que os tios lhe ofereciam. Aos 5 construia casas de expectativas, aos 6 vestia as suas bonecas de tristezas ou felicidades, conforme o dia. Aos 7 resolvia puzzles de nostalgias, aos 8 lia livros de saudades, aos 9 ensinava às outras crianças como se brincar aos orgulhos e humilhações. Foi crescendo, mas nunca deixou de brincar com os sentimentos.

sexta-feira, junho 24, 2011

Dona Bia

Dona Bia vivia atarefada entre duas histórias paralelas. De um amor para o outro, correrias escondidas e memórias secretas. Um malabarismo constante, acompanhado de arritmias pontuais, um ou outro susto elegante, formas aprendidas para disfarçar mais.

Dona Bia dividia-se para multiplicar os beijinhos, Dona Bia entretia-se a somar carinhos.

Sabia Dona Bia, que não podia durar eternamente, mas acreditava piamente que o fim seria sempre adiável.

Mas não sabia Dona Bia que a solidão que sentia se agravava a diário. Impedida da sua verdade desabafar, dia-a-dia mais se enterrava num fosso emaranhado de cruzamentos abafados.

Não sei eu quando será que Dona Bia se vai aperceber que este é um caminho seguro para a sua solidão lhe continuar a doer.

sexta-feira, junho 17, 2011

...

Dias entalados fora das geografias, à procura de um tempo para respirar fundo, à procura do espaço de um abraço. Horas de gritos contidos, de gestos parados antes de tentarem acontecer, sem saber como desatar a garganta, sem saber calar as lágrimas. Podia ser qualquer outra coisa, e distraia-se um bocadinho de roda das possibilidades em volta. Sem na verdade querer agarrar nenhuma, logo à noite para adormecer, em vez de contar ovelhas, contarei possibilidades. E sorria, porque os sorrisos tristes valem tanto quanto os outros, adivinhando uma lua cheia a espreguiçar-se num horizonte em alguma parte do mundo. Naquela parte do mundo segredada entre lençóis.

segunda-feira, junho 06, 2011

Fábulas urbanas improváveis

Hoje nasceu-me uma flor no braço.

Não sei de que semente, não sei que tipo de flor irá tornar-se.

Não me causou muito espanto, ao vê-la percebi que tem vindo a ser ajardinada há já algum tempo, eu é que não me apercebi.

O botão é quadrado e as pétalas que lhe apareceram são pequenas e triangulares. Ainda sem cor definida. Creio que irão ficar maiores.

As raízes são fortes, mas não estão à vista.

As pessoas olharam-me com estranheza. Não estão habituadas a que nasçam flores nos braços das outras pessoas. Eu já sabia que as pessoas podiam ser terra, não tinha antevisto a possibilidade de serem férteis para flores. Nem que eu pudesse ser terra.

Amanhã rego-a, para que fique viçosa. Se me nasceu uma flor no braço, por algum motivo será. Talvez me avise que o Outono possa chegar antes de tempo e fique Inverno no Verão, ou talvez faça do meu braço uma Primavera cheia de borboletas.

Temo no entanto a possibilidade que ganhe espinhos. Suspeito que me rasgariam a pele o que poderia ser incómodo, se me doesse. Se não doer, quem sabe, será só mais uma forma para que nasçam outras flores no mesmo corpo.

Se eu própria vier a ganhar raízes, espero não perder a mobilidade. Mas sempre gostei de sentir o vento nos ramos e nas pétalas... ai, nos braços e cabelo.

sexta-feira, junho 03, 2011

"NightLands"

"Às 5h30 da manhã o céu começa a desbotar. A parte debaixo do céu escorre de preto para azul, são espessas as linhas que mergulham do lado de lá do horizonte, mas a tua respiração mantém-se igual.

Ás 6h10 da manhã, o azul enche-se de vento, torna-se quase transparente e tu dás meia volta sobre ti e largas um suspiro profundo. Todo o ar que existe no quarto dentro de ti, todo o ar que existe no mundo a sair de ti.

A esta hora desconfio que o céu vai escorrer até deixar de existir, que o branco-vazio vai encher o que descansa assente em cima do horizonte, que o único espaço seguro é este sítio inexistente onde estás enquanto dormes.

Ás 7h00 da manhã já é mesmo dia e tu não sabes. Eu sei que é dia, mas não sei exactamente de onde é que ele apareceu. Mesmo tendo visto a transformação da luz pelo espaço da persiana que ontem não fechaste. Sei outras coisas, sei que mudaste o tom da respiração mesmo agora, que é menos profunda, que tem menos pausas. Suponho que o teu sono esteja a perder peso e tento quase não me mexer e quase não respirar, para não correr o risco de te acordar. Corro outros riscos, mas que não me dão tantas insónias.

É antes das 8h00 que os teus olhos abrem mas o teu corpo ainda é a minha terra. E vai ser durante mais um bocado, antes de se encher da consciência de ti e dos afazeres que te esperam, do lado de lá da janela que nos olha."

in NightLands, by Hipnos.