No meu bairro havia um rapaz que tinha uma lágrima guardada no bolso das calças. Foi há mais de 20 anos, mas o outro dia estava a olhar para ti e lembrei-me. Era o Zé dos Berlindes porque era o melhor a jogar aos berlindes lá do bairro. Por causa disso foi ganhando berlindes e mais troféus. Um dia deram-lhe uma lágrima de verdade - foi uma troca. O Zé ganhou o berlinde mas o rapaz que o perdeu pediu--lhe, "Oh Zé, deixa-me ficar com o berlinde e dou-te outra coisa. É o meu bila da sorte, sem este nunca mais ganho nenhum" e o Zé deixou porque sentiu na voz do outro o peso da desgraça iminente. O outro estendeu-lhe uma lágrima e o Zé inspeccionou-a com especial atenção. Virou-a de todos os lados, pô-la de frente para o sol para a ver bem e por fim disse que tá bem, podia ser, e guardou-a no bolso.
O Zè era meu amigo e mais tarde pedi-lhe para a ver e ele todo contente com o seu troféu lá me deixou. Não sem antes me avisar, tu vê lá não a apertes com muita força que ela estraga-se, mas também não a deixes cair que ainda se parte ou se gasta ou se perde no meio do chão. E estendeu-ma, entre o polegar e o indicador, e eu com muito medo lá lhe peguei e virei-a contra o sol para lhe ver os raios por de dentro. Viam-se também outras coisas misturadas, pedaços soltos da história que a fez - todas as lágrimas trazem as marcas das histórias que as criaram.
O tempo passou-se e eu saí do bairro, nunca mais vi o Zé, vim para a cidade grande aprender a fazer outras coisas. E nunca mais me lembrei nem voltei a jogar berlinde. Também nunca mais voltei a segurar uma lágrima com o polegar e o indicador mas depois, depois apareceste tu e descobri que afinal ainda sei como elas se seguram, como se viram de frente para o sol para olhar para dentro delas e como se faz para as guardar no bolso de trás das calças. E andar com elas para todo o lado, com medo de as perder ou estragar, mas sempre guardadas à mão para se olhar de novo quando se tem tempo.
Já fomos, já deixamos de ser, talvez estejamos de volta. Poderá ser o regresso do mito. O mito que nunca o foi.
sexta-feira, maio 04, 2012
quarta-feira, maio 02, 2012
querido diário
9:00 - deslarga.
9:05 - deslarga mesmo.
9:10 - se não consegues deslargar, vai fazer outra coisa qualquer.
(como, aprender gramática. discutir que des-largar seria o oposto a largar, tal como des-cuidar é o oposto a cuidar)
11:17 - olha em volta sem suspiros. o mundo é para a frente, não se dá corda aos relógios ao contrário que se estragam as máquinas.
12:29 - sente saudade do tempo que passou. sente o tempo que passou, com saudade. sente o tempo nas mãos, a saudade a passar. o toque que te segurou a mão a perder o calor. desvanecer-se. para que outras coisas se vanescam?
12:30 - à procura de novos conceitos agora. só por piada.
12:34 - conceptualização sem materialização, a lógica não existe no mundo real. um sorriso.
13:12 - vais ter saudades do tempo de agora - hipótese que faz tremer. não vou nada, não é possível. não quero. shhht, cala-te e olha o presente como se fosse passado - é circular, anda lá, assume de vez. todas as vezes seguidas. rocambolesco. oi? rucambulesco. oi? shhht, cala-te.
14:12 - perdes o controlo outra vez. em histeria agora. porque o mundo é para a frente e vais sentir saudades disto mas não queres nem saber, só viver, tudo de uma vez. todas as possibilidades não cumpridas, todos os "eus" que poderias ter sido, tudo o que poderias ter agarrado. e agarras uma cerveja fresca para te fazer abrandar, até parar.
15:22 - qualidade de vida embalada por palavras que ouves mas não escutas.
16:15 - nunca serão possíveis, todas as possibilidades do mundo que não escutas. deslarga de novo. inventa, mistura, recria. para fingir que sim. para fingir esquisito. fala esquisito a fingir que sabes do que falas. desdenha dos arquétipos e das cargas mitológicas, finge que só tu sabes do rio de palavras que corre, atribui valor aos artigos e aos adventos - todos nas mesmas prateleiras. faz pior, encena o dramatismo pseudo cosmopolita a fundar alicerces performativos desenraizadamente grostescos, sempre de forma espontânea.
16:16 - ri-te com todos os dentes que tens na boca, os que são teus e os que são mais teus porque pagaste por eles e os escolheste.
16:17 - dá-te conta que és uma pessoa que escolheu os dentes com que sorri ao mundo. e ri-te disso.
18:25 - apercebe-te que é tarde demais, porque ainda nada está pronto.
19:00 - pára para fugir.
22:00 - quietude fugidia, sem saber o que quer isso dizer.
22:05 - ai.
22:06 - ai ai.
22:08 - decides mudar de vida.
22:09 - fazes os mesmos erros de sempre.
22:10 - decides mudar de vida.
22:11 - fazes os mesmos erros de sempre.
22:12 - atinge-te em cheio - não há regresso possível nem fuga provável.
00:15 - decide re-escrever o futuro e acaba na prisão de todos os dias.
9:05 - deslarga mesmo.
9:10 - se não consegues deslargar, vai fazer outra coisa qualquer.
(como, aprender gramática. discutir que des-largar seria o oposto a largar, tal como des-cuidar é o oposto a cuidar)
11:17 - olha em volta sem suspiros. o mundo é para a frente, não se dá corda aos relógios ao contrário que se estragam as máquinas.
12:29 - sente saudade do tempo que passou. sente o tempo que passou, com saudade. sente o tempo nas mãos, a saudade a passar. o toque que te segurou a mão a perder o calor. desvanecer-se. para que outras coisas se vanescam?
12:30 - à procura de novos conceitos agora. só por piada.
12:34 - conceptualização sem materialização, a lógica não existe no mundo real. um sorriso.
13:12 - vais ter saudades do tempo de agora - hipótese que faz tremer. não vou nada, não é possível. não quero. shhht, cala-te e olha o presente como se fosse passado - é circular, anda lá, assume de vez. todas as vezes seguidas. rocambolesco. oi? rucambulesco. oi? shhht, cala-te.
14:12 - perdes o controlo outra vez. em histeria agora. porque o mundo é para a frente e vais sentir saudades disto mas não queres nem saber, só viver, tudo de uma vez. todas as possibilidades não cumpridas, todos os "eus" que poderias ter sido, tudo o que poderias ter agarrado. e agarras uma cerveja fresca para te fazer abrandar, até parar.
15:22 - qualidade de vida embalada por palavras que ouves mas não escutas.
16:15 - nunca serão possíveis, todas as possibilidades do mundo que não escutas. deslarga de novo. inventa, mistura, recria. para fingir que sim. para fingir esquisito. fala esquisito a fingir que sabes do que falas. desdenha dos arquétipos e das cargas mitológicas, finge que só tu sabes do rio de palavras que corre, atribui valor aos artigos e aos adventos - todos nas mesmas prateleiras. faz pior, encena o dramatismo pseudo cosmopolita a fundar alicerces performativos desenraizadamente grostescos, sempre de forma espontânea.
16:16 - ri-te com todos os dentes que tens na boca, os que são teus e os que são mais teus porque pagaste por eles e os escolheste.
16:17 - dá-te conta que és uma pessoa que escolheu os dentes com que sorri ao mundo. e ri-te disso.
18:25 - apercebe-te que é tarde demais, porque ainda nada está pronto.
19:00 - pára para fugir.
22:00 - quietude fugidia, sem saber o que quer isso dizer.
22:05 - ai.
22:06 - ai ai.
22:08 - decides mudar de vida.
22:09 - fazes os mesmos erros de sempre.
22:10 - decides mudar de vida.
22:11 - fazes os mesmos erros de sempre.
22:12 - atinge-te em cheio - não há regresso possível nem fuga provável.
00:15 - decide re-escrever o futuro e acaba na prisão de todos os dias.
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