sexta-feira, maio 04, 2012

Relíquias e tesouros

No meu bairro havia um rapaz que tinha uma lágrima guardada no bolso das calças. Foi há mais de 20 anos, mas o outro dia estava a olhar para ti e lembrei-me. Era o Zé dos Berlindes porque era o melhor a jogar aos berlindes lá do bairro. Por causa disso foi ganhando berlindes e mais troféus. Um dia deram-lhe uma lágrima de verdade - foi uma troca. O Zé ganhou o berlinde mas o rapaz que o perdeu pediu--lhe, "Oh Zé, deixa-me ficar com o berlinde e dou-te outra coisa. É o meu bila da sorte, sem este nunca mais ganho nenhum" e o Zé deixou porque sentiu na voz do outro o peso da desgraça iminente. O outro estendeu-lhe uma lágrima e o Zé inspeccionou-a com especial atenção. Virou-a de todos os lados, pô-la de frente para o sol para a ver bem e por fim disse que tá bem, podia ser, e guardou-a no bolso.

O Zè era meu amigo e mais tarde pedi-lhe para a ver e ele todo contente com o seu troféu lá me deixou. Não sem antes me avisar, tu vê lá não a apertes com muita força que ela estraga-se, mas também não a deixes cair que ainda se parte ou se gasta ou se perde no meio do chão. E estendeu-ma, entre o polegar e o indicador, e eu com muito medo lá lhe peguei e virei-a contra o sol para lhe ver os raios por de dentro. Viam-se também outras coisas misturadas, pedaços soltos da história que a fez - todas as lágrimas trazem as marcas das histórias que as criaram.

O tempo passou-se e eu saí do bairro, nunca mais vi o Zé, vim para a cidade grande aprender a fazer outras coisas. E nunca mais me lembrei nem voltei a jogar berlinde.  Também nunca mais voltei a segurar uma lágrima com o polegar e o indicador mas depois, depois apareceste tu e descobri que afinal ainda sei como elas se seguram, como se viram de frente para o sol para olhar para dentro delas e como se faz para as guardar no bolso de trás das calças. E andar com elas para todo o lado, com medo de as perder ou estragar, mas sempre guardadas à mão para se olhar de novo quando se tem tempo.

1 comentário:

Dmitris Papavanuzas disse...

Estás cada vez mais esquisita...

e a verificação de letras para provar que não sou um robô, é tão destemperada! Não podes acabar com ela?? Ou não pretendes comentários?

Beijos!