quinta-feira, agosto 07, 2025

Sr Dr Francisco

 
Sempre impecavelmente arranjado, o Sr. Dr. Francisco até de pijama tinha porte de fidalgo. Daquelas coisas que nascem connosco, diria a sua mãe orgulhosa, sem lhe passar a mão pela cabeça. Tinha sido uma mãe distante, mas naquela altura era assim, se calhar ele tinha feito mal em ter dado tantos mimos aos filhos que agora o respeitavam menos. Onde é que ele se atreveria a falar com os seus pais da maneira que os seus filhos de vez em quando lhe respondiam! Mas também, antes isso do que os ter mandado para o colégio militar e eles terem passado o que ele passou. Não tinha sido uma adolescência fácil, mas tinha compensado: não fosse isso e não era hoje a pessoa que é: Vice-Presidente de uma empresa com mais de mil pessoas, a poucos anos da reforma, um percurso brilhante que só não foi melhor por ser um homem de princípios e nunca se ter metido em certos interesses mais duvidosos. Não se arrependia e, para ser sincero, o sucesso já se antevia no seu consistente percurso de aluno brilhante e perspicaz, calado e reservado, como os professores no colégio apreciavam.

Da infância na aldeia tinha recordações mais adocicadas, apesar do distanciamento físico dos pais, havia as memórias boas da dona Idalina, a criada a tempo inteiro lá de casa, que tinha sido mais mãe que a mãe dele. O Sr. Dr. Francisco fazia um sorriso quando se lembrava dela, a dona Idalina era daquelas pessoas que sempre tinha sido velha – pelo menos era o que ele achava quando era catraio. Escondia rebuçados nos bolsos grandes do avental, tinha sempre uma guloseima para o seu menino preferido, desalinhava-lhe os cabelos com festas mais ou menos desajeitadas e logo o mandava ir pentear-se outra vez antes que a sua mãe o visse. Tinha-lhe encoberto muitas aventuras, como quando o Sr. Dr. Francisco fugia com os gaiatos da aldeia para ir tirar os grilos das tocas fazendo xixi em cima delas; ou quando iam apanhar sapos na ribeira e chegavam a casa todos sujos. Para os outros miúdos não havia problemas, gentes do campo com pais igualmente sujos, mas para o Sr. Dr. Francisco tinha sido a dona Idalina que o tinha salvo de várias sovas e raspanetes. Assim que ela o via entrar pela cozinha, agarrava-o pelo colarinho e corria com ele para a casa de banho, dava-lhe um banho de água aquecida no fogão, trazia-lhe a roupa lavada e impecavelmente passada e ao jantar ninguém na sua mesa desconfiava de nada.

Que esteve o menino Francisco a fazer hoje? Perguntava a mãe, Estive a ler o livro de Baden Powell, respondia o menino Francisco, e logo deixava de ser tema da mais perguntas ou comentários.

Outros tempos, pensava, o mundo agora muda a uma velocidade vertiginosa, parar é andar para trás, ah mas seria tão bom às vezes poder andar para trás... Talvez por isso tivesse começado há coisa de 3 anos um novo negócio só dele, eram vinhas e mais vinhas, davam para engarrafar umas 40.000 garrafas de tinto, umas 20.000 de branco e umas 5.000 de espumante. Este ano não tinha sido bom, muita chuva e o vinho ficava menos saboroso, mas um enólogo de renome ajudava a manter o negócio no mercado. E o Sr. Dr. Francisco gostava de passear pelos hectares alinhados. A mulher tinha gozado e gozado, completamente contra, que raio de crise de meia-idade. Também lhe tinha pouco respeito é certo, mas lá se encarregava de ajudar a organizar e aparecer nos eventos em que abriam a quinta a festas bastante elitistas. Uns quantos enólogos de nomes antigos e uma mão cheia de novos ricos, as revistas de especialidade e uns quantos diretores amigos… enfim, o que tem que ser para garantir o nome à frente do consumidor. Os filhos é que nem apareciam, ás vezes ligavam quase sempre a pedir dinheiro. Como se as casas e os carros e as contas pagas não fossem suficientes, esta nova geração está de facto muito mal habituada, mas também não se podia queixar muito. Ambos lá tinham tirado os seus cursos – cursos de 4 anos tirados em 5 ou 6, e arranjado os seus trabalhos – com uma grande ajuda dele e dos seus contactos. E mais a mais, os anos que haviam passado fora tinham ajudado, lá nisso o Sr. Dr. Francisco tinha feito questão, a filha um ano em New York, o filho um ano em Londres. Para conhecerem outras culturas e outras formas de vida, e que não o acusassem (como a mulher tinha acusado) de ele estar a fazer o mesmo que os seus pais lhe tinham feito, aquilo lá tinha alguma coisa a ver com o colégio interno, então a idade era outra, as condições também, era mesmo falar do que não entendiam!... O Sr. Dr. Francisco não podia deixar de achar irónico, como toda a gente cá fora tinha tanto respeito por tudo o que ele dizia, mas dentro de casa era o que era, ninguém o ouvia.

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