Já fomos, já deixamos de ser, talvez estejamos de volta. Poderá ser o regresso do mito. O mito que nunca o foi.
terça-feira, junho 24, 2014
Dizia "o tempo está embrulhado" enquanto se embrulhava e tropeçava nas palavras aquelas, as que não queria juntar numa frase mas que lhe sobravam dos bolsos, a espreitarem, a escorregarem, a ficarem perdidas pelo chão da rua e nas entre-almofadas do sofá, caídas em conversas com sabor a vinho e temperaturas de medos. Dizia "o tempo está embrulhado" e deixava o olhar preso numa nuvem de cor ameaçadora, engolia as fragilidades lembradas como quem já as tinha remendado com linhas e fita cola, esboçava um sorriso pontual como quem sabe que a vírgula se coloca entre estas duas palavras e prendia os atacadores dos sapatos às pedras da rua porque não queria voar, nem pairar, nem nenhuma história que lhe fizesse tirar os pés do chão - afinal o tempo está mesmo embrulhado, já viste a cor daquela nuvem? nem é chuva, o que aí vem é tempestade, não preferes um guarda-chuva? não, deixa estar, os atacadores amarrados às pedras chegam - e chegava também o cheiro a terra molhada, vindo das entranhas do mundo, que as coisas que se escondem dos olhos aparecem do lado de dentro dos outros sentidos. A outra? A outra sentou-se no chão, mesmo ao lado, e pensou apenas que não são precisas amarras para se poder ficar, a cor ameaçadora da nuvem até pode parecer prateado e ser bonita, um dia os teus atacadores desatam-se sozinhos e vamos embora de mãos dadas ver outra coisa qualquer. Até lá, fico-me por aqui contigo.
sexta-feira, junho 20, 2014
O muro do Sr. Fernando e as histórias de um mundo
Tinha
14 anos o Sr. Fernando quando começou a desconfiar que a vida é feita para
perder. Foi pela altura da morte do seu primeiro fiel amigo - chamava-se Leão, era
um golden retrivier de pêlo quase branco e o Sr. Fernando, que na altura
ainda não era senhor e tinha quase a mesma idade do cão, ficou a saber pela primeira
vez como era chegar a uma casa mesmo vazia.
O Sr.
Fernando aos 15 anos não quis outro cão, que depois morre-se-me, que o que
ganhamos agora perdemos depois, e aos 17 anos fugiu da possibilidade da primeira
namorada a sério, que as outras de "brincar" já lhe tinham causado
danos, que elas vêm mas vão, e que não preciso nem de namorada nem de cão. Mas
esta ideia não lhe durou muito - a rapariga insistiu com beleza suficiente,
pouco tempo depois até começaram a fazer os planos de serem felizes para
sempre, deram nome ao primeiro, segundo e terceiro filho e disseram adeus a
meio de um programa de Erasmus que criou mais distância entre Lisboa e Roma do
que a que separa Pequim da Madragoa.
Para
levantar a cabeça e endireitar o peito, o Sr. Fernando pôs a mochila às costas
e a tristeza nos bolsos - saiu de Roma à procura do mundo, conheceu gente de
lugares com nomes estranhíssimos, aprendeu que se sobrevive sem escova de
dentes por uns dias, que é possível ser feliz com a mesma t-shirt outros tantos,
descobriu que um abraço é um abraço em qualquer nacionalidade, aprendeu a dizer
“Olá” em 14 línguas diferentes e “Adeus” em 15 – a vida é sempre a perder,
concluiu.
Voltou
para casa o Sr. Fernando, de olhos águados mas sorridentes, contava aos miúdos
da rua que o ouviam as aventuras vividas em terras mais ou menos duras e
concluía, agora é isto, emprego das 9h as 5h e saber que a vida é sempre a
perder – perder pessoas, perder lugares, perder vontades, perder até a
agilidade do que somos ou fomos, mas não seremos amanhã.
Porque
amanhã, Sr Fernando, amanhã é dia de começar outra vez, amanhã é dia de ganhar
antes de perder porque o que não perde Sr. Fernando são os sorrisos que
desenhou e as memórias que criou. E o Sr. Fernando intrigado, que sabes tu da
vida, entre videojogos na tv e jogos de futebol na rua? E o que ele sabe Sr.
Fernando, é que o Sr. Fernando por ser quem mais perdeu é também o melhor
contador de histórias do bairro e o que mais viveu.
segunda-feira, junho 02, 2014
4:00 da manhã, a água na cara entre lavar e afogar, um reflexo distante no espelho e tu a procura do teu próprio olhar, como foi que chegaste até aqui, as mãos na bancada e é raiva a sair-te pela boca, pelos olhos, pelo nariz, pelos ouvidos, as mãos na bancada e os dedos a tentar cravar pedra, preciso sair da minha cabeça e o nariz franzido mesmo antes de um respirar fundo em tons de cinzento e preto. Podia desistir, podia mandar isto tudo para o caralho, podia fazer uma mala pequena e recomeçar noutro sítio qualquer. Sem nome, sem cara, sem defeitos, quanto tempo se consegue manter um anonimato, quanto pesa largar o que nos sustenta, de que são feitas as raízes que não queremos? Como se sossegam as inquietudes nocturnas, a que sabe o céu onde não chegas, quanto te sufoca a escuridão? Novo suspiro, são fases, são faces que nem sabias que tinhas e a cama nem fria nem quente, nem aconchega nem desespera, nem tecto nem chão nem janela nem porta, não há posição, não há saída.
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