23 anos sem ti, 48 anos contigo.
Houve um tempo em que moço bravo feito abria o peito às ideias revolucionárias, mais ou menos revolucionárias - se tiver que ser sincero - mas abraçava as causas - pelo menos até ser hora de jantar, conheceste a minha mãe, sabes que sempre foi chata com as horas de jantar, mesmo depois de homem feito - desfrutava de uma liberdade curiosa de ir ver o mundo. Lembras-te quando queria que nos mudássemos para a França e tu dizias "Mas Manel, e depois como os entendemos? E como arranjo os coentros para fazer açordas, que tu tanto gostas e eu não sei se há coentros na França e a tua mãe está doente e precisa de ti Manel, e agora que o gaiato é pequeno é que queres ir, deixa-o crescer mais um tempo, depois nem fala português nem sabe a que sabem coentros Manel" e sempre gostei do meu nome na tua boca, a forma como dizias "Manel" tinha o carinho dos nossos abraços e não havia tempo nem espaço para abraçar mais nada além de ti e das barrigas que iam crescendo uma depois das outras. 5 filhos, já viste, e 2 até são doutores mas está tudo orientado e todos tem os teus olhos e quando dizem "Pai" também há carinho mas não há os teus olhos a olharem para mim assim, como fazias quando dizias "Hoje não há açorda, não te chega já de pão, pão todos os dias a todas as horas? E vai-te pentear homem, andas sempre despenteado, não te deixei um pente no casão para não andares assim desgrenhado?".
Houve um tempo em que moço bravo abria o peito a sonhar com sítios lá longe, mais longe do que para trás daquele cabeço, até ir ver o mar, e fomos ver o mar os dois, lembras-te, e tu dizias que cheirava estranho e rias descalça com a saia levantada por debaixo do joelho e sempre tiveste uns artelhos lindos, mesmo quando a má circulação não perdoou, mesmo quando se te inchavam as pernas no verão e as artroses te criaram um ritmo novo, e tu dizias "não faz mal Manel, olha para elas que nem roupa trazem, coitadinhas que devem ter frio, com elas ali naquelas coisas tão apertadinhas ninguém me olha os artelhos Manel" e dizias que o som do mar era bonito mas dava vontade de fazer xixi e eu nunca te disse que não há nenhum som mais bonito do que quando te rias e dava vontade de saber todas as histórias engraçadas do mundo para que nunca parasses de te rir.
Houve um tempo em que moço bravo queria ir para a capital, que lá é que há a vida, e fomos à capital e tu vaidosa com um lenço novo ao pescoço e nunca tínhamos vistos tantos carros e as estátuas são muito altas, para que fazem as estátuas tão altas se não dá para as olhar de frente, a da paróquia tem um sorriso triste e um alto estranho numa bochecha e tu dizias que devia ser um abcesso de pedra e eu nunca soube para que pensavas tu sobre aquelas coisas porque as estátuas não tem abcessos nem tristezas, e para que as querias olhar de frente porque desde que pudesse olhar de frente para ti não havia nada mais que eu quisesse ver.
Houve um tempo em que moço bravo queria fazer coisas e fizemos 48 anos de casamento e tu a cortares os alhos, e tu a cortar cebola, e os teus lenços ainda na gaveta e os nossos filhos que aparecem menos com os olhos iguais aos teus, fizeram-se uns belos moços, sabes que sim, mas eu não sei cortar alhos nem cebolas e escondo-lhes as lágrimas na almofada, que estas coisas não são para se amostrar, o que pensariam, e já sei, que tenho 48 anos para recordar e que fomos felizes dizem eles, mas depois de ti não quero isso, depois de ti não quero muito, as coisas que quero depois de ti é que o mundo se esqueça de mim, que o sol não nos entre pela casa adentro e que os corvos me venham buscar pela janela do nosso quarto durante a próxima madrugada em que não estejas a dormir comigo. Daqui a bocadinho.
Sem comentários:
Enviar um comentário