Sr Tiago
Tocava o despertador às segundas-feiras e o Sr. Tiago não se demorava a sair da cama. Tomar banho e vestir um fato, fazer o nó da gravata depois de ligar a máquina do café, a mulher que se levantava mais tarde e ele que saía sem pressa nem atraso para mais uma semana de trabalho. Organizado, metódico, estóico. O carro era bom, marca alemã com mais espaço e potência do que o que seriam necessários, cor escura. O sr. Tiago era seguro e confiante, era daqueles que ocupava mais do que o seu lugar quando se sentava: pernas abertas, braços abertos, ligeiramente recostado nas cadeiras, tinha sempre algo a dizer, a acrescentar, a apontar ou a criticar. Filho mais velho do que chamariam nos estados unidos de “self made man”, a empresa do pai sempre esteve presente na sua vida. Em miúdo, foi neste recinto que aprendeu a patinar e a andar de bicicleta; a sua primeira mota estava em nome da empresa; parte dos seus verões haviam sido passados ora no armazém, ora na oficina e mais tarde no escritório. Nessa altura alguns dos empregados tratavam-no por “o menino”, mas isso fora lá atrás. Agora era Senhor Doutor, e ele nem tinha esse titulo universitário mas também não os corrigia. A empresa era de transportes - quem é que em menino tinha sonhado em ser o maior gestor de uma empresa de transportes? - e não sendo uma mega multinacional, tinha os seus 300 empregados e uns quantos estagiários ocasionais. Estava bem na vida, o Sr. Tiago, não fosse de vez em quando ter que engolir sapos do pai, mas também não era grande sacrifício e além disso o velho estava cada vez mais velho e portanto o sr. Tiago também ja lidava com ele de outra maneira. Estava bem na vida, o sr. Tiago, sem grandes sonhos nem paixões mas lá disso nunca tinha havido que a vida é dura e sonhar e desejar era para outros românticos. Já a sua mulher, de vez em quando punha-se com conversas lamechas, que os presentes deviam ser bem pensados, que podiam ir fazer uma viagem a África... África? Como se ele aguentasse 15 dias a comer porcarias mal cozinhadas, ou como se a empresa aguentasse 15 dias sem ele! Que paciência às vezes era preciso ter, ainda se ela tivesse razão de queixa da vida que levavam!... Não, isso de divagações e sonhos não era para ele, o sr. Tiago era de fazer o que tinha que ser feito - geria a empresa, geria a sua família, fazia-se respeitar pelos amigos. Ocasionalmente metia-se com as estagiárias, aventuras de curta duração e de quase sempre apenas uma incidência, ao domingo levava a mulher a almoçar fora, trocava de carro a cada 3 anos e acima de tudo nunca se entretinha com pensamentos sobre o que poderia ser diferente ou como gostaria que a sua vida fosse. Era como era e ele sabia bem fazer isto.Já fomos, já deixamos de ser, talvez estejamos de volta. Poderá ser o regresso do mito. O mito que nunca o foi.
sexta-feira, agosto 01, 2025
quinta-feira, julho 31, 2025
Dona Laura
Dona Laura sabia, porque sua mãe muito repetia, o que o seu nome significava: a vitoriosa, a triunfadora. Dona Laura ficava vaidosa quando sua mãe lhe escovava os lisos cabelos compridos. Ela, menina, inspirava de costas direitas, pronta a triunfar na vida. Quarenta anos depois, olhava para o espelho e fazia o mesmo movimento direito à procura da pose de triunfo. Sempre fora menina ajuizada, estudante média-para-o-boa, nunca tinha perdido um ano do curso de letras que escolhera. Casara com um colega da universidade - o seu segundo namorado da vida inteira - e foram viver para a terra dele, o que não era um problema porque estavam apenas a duas horas da sua. Aos fins-de-semana até dava para ir e voltar. Dava para ir e voltar agora, no princípio passavam lá o fim de semana inteiro mas ele tinha cada vez menos paciência para isso, da mesma maneira que tinha cada vez menos paciência para programas com ela. As visitas a casa a encurtar e as semanas entre elas a aumentar, mas que diferença fazia, afinal os pais dela tinham mais perto a irmã, estavam apoiados e confortados e tampouco lho cobravam. Já dona Laura sabia que tinha uma boa vida entre os dois salários e os poucos gastos, um trabalho confortável para a câmara municipal, o marido como braço direito na empresa de seu pai - sem grandes riscos, luxos ou aventuras mas estável e seguro, a assegurar o futuro. Para ser sincera, Dona Laura, a vitoriosa, gostaria se ás vezes fizessem outras coisas, sei lá, mais viagens, jantares ao som das próprias conversas em vez de ao som da televisão… um gesto de romantismo dele - mas que não fosse o de irem almoçar fora ao domingo, era sempre ao mesmo restaurante, isso ainda conta como romantismo? Ele dizia que sim - meio impaciente, sem a olhar nos olhos - o que queres agora ao fim de tantos anos juntos, e ela dizia para si mesma que o casamento é isto mesmo, que estou a ser exigente e irrealista, ele tem lá as preocupações dele e da empresa e além disso nós temos esta bonita história de 23 anos juntos… O mal são as comédias românticas que passam na televisão, que não sei porquê mas às vezes põem-me a pensar no Júlio, o meu primeiro namorado, que apanhava malvas no quintal da vizinha sempre que vinha ver de mim, o que será feito dele? Ah mas Dona Laura nem se atrevia a suspirar, depressa tentava acabar com estas divagações nostálgicas da sua cabeça, concluindo que decerto o Júlio está gordo e desarranjado, era vaidoso mas não tinha gosto nenhum, andará lá na sua vida, tanto faz, eu é que tenho que ir ao cabeleireiro, e na volta passar no supermercado para comprar café, a ver se não me esqueço do que o adjunto da câmara falou na sexta-feira passada... e assim seguia rapidamente para a sua rotina, Dona Laura, a vitoriosa, a triunfadora, que não sabia explicar esta sensação de vazio que de vez em quando a enchia.
sexta-feira, julho 11, 2025
Sr. Jacinto
Nas rugas profundas da cara do Sr. Jacinto podiam antever-se as preocupações que lhe haviam moldado
a vida, as preocupações que lhe serviram de motivação para se levantar ao mesmo tempo do sol e sair
de casa dia após dia - de semana ou fim de semana - sempre a dar vazão a mais um quintal que
precisasse de ser ajeitado; a uma sebe de ramos desalinhados que precisasse de ser endireitada; a uma
relva amarelada e com peladas que precisasse de ser acarinhada. Era assim o Sr. Jacinto, um trabalhador
empenhado e respeitado, que sabia mais de jardinagem que qualquer outro e assim havia indo
construíndo o seu caminho - mesmo quando outras empresas mais modernas começaram a aparecer. A
razão era simples e bonita: o Sr. Jacinto havia casado com a Maria, a rapariga mais delicada da rua e que
até despertou a paixão pré-adolescente do Sr. Dr. Francisco da Palma e Matos. Coisas de miúdos, é
certo, mas também o foi o facto de que a Dona Maria não se tinha deslumbrado com o filho dos
senhores. Claro que os senhores, ao primeiro sinal das palpitações do filho mais velho o enviaram
apressadamente para um colégio na capital e Maria, sempre recatada e delicada, nem sequer se fora
despedir dele. Anos mais tarde, quando ela aceitou namorar com o Sr. Jacinto, este preocupou-se pois
sabia que lhe caberia a ele dar-lhe uma vida digna e com condições, que até lhe permitissem comprar
dois ou três lenços novos quando ela quisesse.
Quando casaram, o Sr. Jacinto já havia conseguido uma casinha asseada, na mesma rua em que tantas
vezes a seguira com o olhar quando a mãe de Maria a vinha chamar para o jantar. Logo no primeiro ano
de casados ela deu-lhe um belo rapagão de 3 kilos e tal, com choro tão forte como o de um bezerro. E o
Sr. Jacinto preocupou-se, que agora eram três e depois passaram a 4 e a seguir chegaram a 5, a mais
nova a sua alegria, tão parecida com a mãe que era. De físico, de personalidade, tinha maiores
ambições. Ora com a família a crescer, o Sr. Jacinto preocupava-se ainda mais e trabalhava mais,
justamente o suficiente para assegurar que os três filhos pudessem crescer, estudar e fazerem-se à vida,
nas mesmas condições e com o mesmo conforto que todos os outros de famílias mais abastadas. Ou
quase. Certo era que os três estavam na capital, só a mais nova se tinha licenciado, mas os três bem
empregado. O mais velho era eletricista, o do meio estava na construção civil, e ela trabalhava numa
grande empresa de estrangeiros. Falava línguas, vestia de negócios, andava sempre pintada e arranjada.
Os três tinham casado, já havia netos que vinham de vez em quando, mas apesar da família a crescer, a
casa ia ficando cada vez mais vazia. Especialmente depois da morte da Maria, os miúdos vinham ainda
menos, os netos iam crescendo longe do olhar do avô. E o Sr. Jacinto, que outrora trabalhava por
preocupações, agora tinha que explicar ás novas clientes que não, que não se ia reformar, que era
mesmo das flores que gostava e que portanto para o ano ainda estaria disponível. Como no ano
passado, e todos os outros antes desse.