sexta-feira, abril 15, 2011

pura tagarelice

by tap.

Sabes... o outro dia vi um pardal gordo. Suponho que ele não sabe que estamos em crise. Os pássaros sem dono são selvagens, podem-se dar ao luxo de serem gordos e terem penas cheias de brilho. Os cães de rua são vadios, não podem ser outra coisa senão magrinhos e desgrenhadamente sujos. Aposto que nunca tinhas pensado nisto, pois não? Eu também não, mas o outro dia vi um pardal gordo e agora lembrei-me disso. Pelo menos acho que vi... mas não sei bem. Já reparaste como nos últimos tempos tudo se confunde? Entre realidade e ilusão, entre experiência directa ou indirecta, entre os videos do youtube e montagens de photoshop de coisas que não existem em mais nenhum sítio senão nesta janela, mesmo quando as coisas que deviam estar do lado de lá da janela, às vezes saltam para cá. E têm saltado muito. E cada vez há mais pessoas que não são bem pessoas às vezes, que andam máscaras e fatos e são personagens surrealistas a fazerem parte do nosso quotidiano... sabes... sabes do que falo? Deixa, não é importante, deixa-me só falar a saber que me ouves. Mas isto é mesmo assim, tem-se visto, as pessoas estão a tentar recriar no mundo real coisas do mundo virtual. Estamos a diminuir fronteiras das impossibilidades, um fenómeno dos nossos tempos. E mesmo assim, sabes outra coisa...? È que eu gostava de te oferecer um passaporte para outra realidade, uma inventada por nós, um sítio onde os cães pudessem estar gordos e terem as penas cheias de brilho e tu sorrisses sempre a ver as coisas cheias de... beleza? Não, não tem que ser beleza. Há coisas feias que são caricatas ou queridas ou... ou até bonitas... por causa de serem feias. È um tosco que tem uma essência genuína. Tu gostas disso, de coisas toscas mas genuínas.

Não sei onde se tiram esses passaportes. Mas se calhar a ideia é estúpida. Afinal de contas, aqui há pardais gordos que não sabem que estamos em crise, se calhar há cães vadios que se acham selvagens também. Gatos há, de certezinha absoluta. Já conheci uns quantos assim. A sério, conheci mesmo, não te rias.

Não sei mesmo onde se tiram esses passaportes. Talvez consiga descobrir. Deixa-me vestir um sorriso, calçar uma vontade, abootoar a atenção e sair para a rua, dizer bom dia ao sol, e ir à procura. Queres vir? Se calhar ainda encontramos aqui coisas diferentes e depois não precisamos do passaporte para nada. Anda, vem.




segunda-feira, abril 11, 2011

roupa velha ou jardineira, ou outra coisa do género.

by tap.

Transformava a chuva em estórias que lhe nasciam das poças acumuladas na terra e entravam pelas frinchas da janela, acompanhadas pelo cheiro de raizes agradecidas. Era quase um passatempo silencioso, os enredos cresciam-lhe viçosos na cabeça, adornados por pétalas de várias cores e tamanhos. Depois, exorcizava-as a custo do corpo, para que se plantassem numa folha de papel. O processo estava pois condenado à partida, como pode o espírito de uma matéria querer prender-se ao cadáver de si mesmo?


Pelo meio restava-lhe misturar a água do mar com pedaços da sua alma, cheia de tatuagens, e deixar o preparado escorrer-lhe pelas bochechas. Dizia que havia de dar sentido à existência dos lenços brancos, já que não entendia as razões de criação das peúgas da mesma cor.

Era isso que fazia com frequência e desesperava as pessoas - juntava tudo na mesma panela, misturava, remisturava, adicionava mais e mexia. E diziam-lhe que não, que cebolas e limão não se regam com chocolate, que o alho não serve para temperar fritos de peixe com maracujá e canela, que a melancia não combina com carne de porco e mel. E quando parava para olhar o quem lhe dizia estas coisas, só via bocas a abrirem e a fecharem, produtoras de sons que criavam imagens esfumadas à frente dos seus olhos mas das quais não conseguia retirar sentidos.

Ás vezes enchiam-lhe o espírito urgências e ansiedades descontroladas, pressas imediatas presas no corpo, a rebentar com o corpo. Nessas vezes não sabia que fazer consigo, segurava-se simplesmente atrás de uma janela, a tentar respirar, palmas das mãos abertas de encontro ao vidro, a tentar respirar. A tentar lembrar-se de como se respirava.

Se calhar as outras bocas a mexerem tinham razão e há coisas que não servem para serem misturadas, para se juntarem, para se contaminarem mutuamente acrescentando-se novos cheiros e cores. Se calhar todas as coisas tem pelo menos um limite, inultrapassável, uma barreira que separa o que pode ser contagiado daquilo que haverá sempre de permanecer intocado. Mas se sim, então para que há ideias como a da inter-subjectividade? Ou para que há a primavera e o outono, estações de transição?

E depois, invariavelmente, mais tarde ou mais cedo, começava a chover e a chuva podia ser transformada novamente em estórias, enquanto a noite de fazer arder a neve não chegasse.



quarta-feira, abril 06, 2011

Colchão de Perdição - Parte III

Ligeiramente embriagada Teresa percorreu o longo corredor de casa dos Sousas. Tentou servir-se do olfacto para descobrir qual a porta que correspondia à casa-de-banho, inspirando longas golfadas de ar e movimentando os braços num movimento circular e constante - exactamente igual ao bater de asas de um cisne - de forma a ajudar os odores da casa a penetrarem as suas narinas. Infelizmente o vinho levava já alguma vantagem e Teresa acabou por desistir e fazer uso do velho método abrir-todas-as-portas-até-encontrar-a-divisão-que-se-procura. Esse, apesar de mais longo, nunca falhava.

Decidiu-se a entrar na terceira porta do corredor. Toda a gente sabe que a casa-de-banho nunca fica logo ao pé da sala de jantar. No momento em que abriu a porta tudo o que viu foi um grande NADA. Apenas uma massa escura e compacta que ocupava toda a divisão. De repente, sentiu que as luzes do corredor desapareciam e que o mobiliário, antes meticulosamente arrumado, começava a mover-se em direcção ao grande vazio. Consciente do que tinha diante de si, fechou a porta num ímpeto. Será possível?!? Uma sala com um buraco negro?!? Mas isso seria demasiado perfeito!! Os Sousas são mesmo um espectáculo! Ou isso ou alguém já memeu buito, LOL! Das duas maneiras, adoro-os e é exactamente isso o que tenciono dizer-lhes da próxima vez que os vir!

Teresa recompôs-se, ajeitando a saia e o cabelo, e seguiu caminho em busca da casa-de-banho perdida. O que estaria por detrás da porta n.º 2? Ao abri-la percebeu que tinha entrado no quarto dos seus anfitriões. Por impulso, mais que por outra coisa qualquer, voltou a fechar a porta e preparava-se para continuar a sua demanda, não tivessem os seus olhos capturado a imagem da cama do casal situada exactamente no centro da divisão. Fora traída pelos seus próprios olhos!

Movida pela curiosidade, Teresa voltou a abrir a porta estacando diante da maravilhosa visão. A cama, um futon em madeira de mogno, não foi aquilo que chamou à atenção de Teresa, mas sim o colchão que repousava tranquilamente no seu centro. A olho nu percebeu estar perante um exemplar original e único de um Ortoclass de Espuma D45 Pillow Top, com espuma poliuretano 100% D45 e tecido com tratamento anti-ácaro, anti-mofo e anti-alérgico. Teria que analisar melhor, mas se tivesse que apostar, diria que o belo exemplar incluía ainda respiros nas faixas laterais para proporcionar circulação de ar no interior do colchão. Teresa nem queria acreditar na relíquia que tinha à sua frente. Santa Madre de todas as Madres! Bendita a hora em que decidi inscrever-me e ao Simão nas aulas de pintura para casais!

Se Teresa tivesse ficado por ali, limitando-se a apreciar mentalmente a sua descoberta, a sua vida e a de Simão teriam seguido com normalidade. Mas não foi isso que aconteceu e o casal viveria para o comprovar.

Teresa olhou em redor, e percebendo que continuava sozinha, deslizou, hesitante, para dentro do quarto fechando a porta atrás de si. O que aconteceu a seguir permanece até hoje uma incógnita para Teresa. A pessoa dentro daquela sala não era mais Teresa, mas outra.

Entretanto na sala de jantar, Simão perguntava-se se estaria tudo bem com Teresa. Tinham passado 5 minutos e ela não tinha regressado. Preocupado, decidiu ir procurá-la, deixando os convidados a tomar digestivos e a preparar a noite de jogos que se seguiria. Já no corredor Simão viu a luz que vinha da porta do quarto dos Sousas e dirigiu-se até lá. A imagem que surgiu diante dos seus olhos, fez com que as suas pupilas se dilatassem e a sua pulsação aumentasse para o dobro. Estava a ter uma descarga de adrenalina.

Teresa jazia deitada na cama, completamente imóvel. Dormia profundamente. As almofadas outrora adornos de cama, espalhavam-se caoticamente pelo quarto e o edredon tinha sido puxado e cobria o corpo da sua mulher. Simão chamou por Teresa acordando-a ao seu transe. Teresa, o que estás a fazer?!? Sai imediatamente daí! Mas Teresa, que entretanto tinha despertado, não quis ouvir Simão, limitando-se a abanar a cabeça e a abraçar o colchão. Não Simão, não percebes? É um Ortoclass de Espuma D45 Pillow Top. Um Ortoclass de Espuma D45 Pillow Top!! O rei dos colchões...e é meu. É todo meu!!!

Desesperado Simão dirigiu-se à cama para de lá tirar Teresa, mas a precipitação fez com que tropeçasse numa das almofadas espalhadas pelo quarto e caísse amparado, mesmo em cima do Ortoclass de Espuma D45 Pillow Top.

O contacto com a superfície sedosa e macia do colchão induziu Simão num estado de transe. Primeiro sentiu-se flutuar em nuvens de algodão doce, ao lado de felizes hipópotamos magenta que comiam chupa-chupas deitados em chaise-longs. Teresa estava com eles e todos eram um só ser, feliz, completo e perfeito.

Quando vieram a si, Simão e Teresa, não sabiam quanto tempo tinha passado e como tinham ido ali parar. O ruído dos convidados vindo da sala trouxera-os de volta à realidade e perceberam pelo som das gargalhadas e do ambiente de festa que ninguém tinha dado pela sua falta. Num estilhaço de segundo saltaram da cama e falaram aquele idioma só dominado pelos casais mais cúmplces, a língua dos olhos. Entreolharam-se longamente, naquilo que mais parecia o jogo de ver quem-desvia-primeiro-o-olhar, e decidiram que tudo tinha que ser reposto de volta à normalidade antes que alguém descobrisse o que tinham feito.

A noite chegara ao fim e o pequeno incidente tinha passado despercebido aos anfitriões e aos convidados que continuavam entretidos a jogar charadas no momento em que Teresa e Simão se juntaram a eles na sala. O regresso a casa foi feito em silêncio. Envergonhados com as suas acções nenhum dos dois se atrevia a falar sobre o assunto. No entanto, apenas uma ideia ocupava os pensamentos dos dois: tinham que voltar a deitar-se naquele colchão.

terça-feira, abril 05, 2011

Colchão de Perdição - Parte II

"Não quero saber se lá dormiram os teus bisavós, o Ghandi ou o General De Gaulle! Aquele colchão é uma MERDA! Só faltava ser em talha dourada para preencher todos os requisitos de uma peça digna de museu! Eu quero, NÃO! Eu exijo um colchão novo. Com molas, com capa dupla, com acolchoado anti-choque, com aquecimento central se os houver! Porque é que não podiam ter dado o colchão ao teu irmão Duarte?? Hã? Ele nunca dorme em casa, mesmo. Mas não! Tudo o que é lixo tinha que vir para nós. Vê lá se te deram a chaise-long que eu tanto elogiei?? Ou o louceiro que está a apodrecer na casa dos arrumos e que tanta falta nos faz?..."


Apesar da relutância em livrar-se da peça na qual todos os seus antepassados tinham dormido, Simão tinha que admitir que os argumentos da sua mulher não eram totalmente desprovidos de sentido. Com efeito, as mazelas fisícas provocadas pelo desconfortável colchão começavam a transparecer nos olhos remelentos e encovados de ambos. No trabalho, Simão revelava quebras de produtividade, chegava atrasado e esquecia-se constatemente dos seus compromissos. Além disso havia ainda aquele incidente em casa dos Sousas, sobre o qual nenhum dos dois ousava falar...


Os Sousas eram um casal que Simão e Teresa tinham conhecido nas aulas de pintura para casais, e com o qual tinham tido a maior das empatias. Não era só o facto de os Sousas terem os mesmos ideais de vida de Simão e Teresa (o que era bem ilustrado pelo facto de serem os únicos dois casais a frequentarem o curso de pintura para casais) mas era muito mais que isso: era generosidade que demonstravam na hora de partilhar as cores. O magenta era a cor mais disputada entre Simão e Pedro ("Para fazer os enchimentos dos hipópotamos!" diziam em uníssono.) mas Pedro, nunca se parecia importar de pintar o seu hipópotamo de rosa cristal - deixando o magenta para Simão - sempre que só existia uma bisnaga de magenta no cesto das cores!!


A relação entre os casais evoluía a um ritmo saudável até que os Sousas decidiram oferecer um jantar em sua casa para os seus amigos mais chegados. Tudo corria lindamente: o mais soberbo dos vinhos regou o serão de uma chuva púrpura e inebriante. E a mais suculenta das carnes abriu caminho na sala de jantar e desfilou diante dos olhos ávidos dos convidados, tentando-os. Tentando-os como uma bailarina de cabaret tenta os boémios e cadeleiros ao levantar o saiote diante das suas fronhas embasbacadas. E a companhia? Oohh a companhia...de fazer inveja aos von Oysters und Caviar, os vizinhos socialites que viviam no apartamento em frente de Simão e Teresa.

Depois de todo aquele vinho Teresa desculpou-se e levantou-se para ir à casa-de-banho. Percebeu momentos mais tarde que nunca alcançaria o seu destino...

segunda-feira, abril 04, 2011

A lenda da Berlenga ou o 1o moinho do mundo

by taparuere

Reza a lenda que na ilha da Berlenga mais pequena, também chamada de Berlenguita, nasceu uma miúda de olhos sorridentes que gostava de dançar sobre mar nas noites de lua cheia e queria transformar o mundo nos dias de sol.

Não vivia sozinha, nesse tempo lendário de onde não ficaram resquícios escritos. Habitavam na Berlenguita uma pequena comunidade de pessoas que conseguiam ver e ouvir o vento e falar a língua dos animais marinhos.

A miúda, que é a razão da nossa lenda, tinha vontade de fazer coisas, mas não sabia quais. E às vezes tinha vontade, mas quando pensava em começar a fazê-las era sempre poder fazer tanta coisa ao mesmo tempo que acabava por nunca fazer nada.

Assim se passavam os dias e os meses, com ela a pensar naquilo que poderia melhorar mas sem acabar por terminar nada, quando deu à costa da Berlenguita um cavalo marinho bem-falante. Falava e barafustava, com a terra dos homens - dos outros homens, aquela terra daqueles que se esquecem que vivem em ilhas e lhes chamam continentes - como se o seu pedaço de terra não estivesse também no meio do mar. Aqueles homens que se esquecem de organizar os 5 sentidos que têm e que aprendem a ver com ouvidos, a olhar com as mãos e a sentir com a cabeça. Que vivem naquela terra que parece terra de malucos, com eles a tentarem falar pelo gosto e a esquecerem-se do cheiro do tacto. Que precisam de algo, que os faça pôr os sentidos no sítio certo, que os faça usar aquilo que guardam sem uso dentro deles. E foi-se embora, o cavalo falante barafustador, e ainda se ouvia quando se afastava a rezingar pelas ondas fora.

A miúda ficou-se a pensar naquilo, nas terras que lhe serviam de horizonte e nos homens que viam com os ouvidos e ouviam com as mãos para sentir com a cabeça. Nada daquilo se passava na Berlenguita e ela sabia qual a razão. A razão era a pedra de Berlenguita, acaso feito ilha, ilha feita pedra-raiz-dos-seres, uma das essências da natureza a aparecer de soslaio na tona do mar. Esta era a pedra da criação que tinha dado origem ao mundo e aos humanos, a ferramenta que a dançarina miúda sabia que poderia repor os sentidos nos sítios. Mas, como conseguir espalhar na ilha gigante, chamada de continente, a pedra mágica e tão consistente?

Pôs-se a pensar durante os entardeceres. Precisava de uma forma qualquer de desgaste, uma máquina que fosse roendo ou desgastando, para da pedra dura tirar pedaços pequenos e soltos, partículas que soltas no vento levassem aos homens que o não escutavam as respostas que não procuravam. E para essa forma de desgaste, precisava de tempo contínuo, algo que nunca parasse e andasse, sempre, andasse, sem nunca sair do sítio. Pegou num pau de bico e fez desenhos na areia, uma forma, outra forma, um meio, outro meio, e por debaixo do seu cabelo as ideias multiplicavam-se. Encontrava várias respostas no vento, quando se lhe bloqueava o raciocínio e fixava os seus olhos brilhantes no horizonte de terra. Via passar o vento, multi-colorido-transparente, a encorajá-la e a prometer-lhe ajuda.

Da construção que tomou em mãos nasceu o primeiro moinho da história das lendas, com grandes palas a rodar dia e noite, a fazer girar pedra sobre a pedra e a transformar o duro em farinha. Quando o montinho de pedra-raiz-dos-seres transformada em farinha já cabia nas duas mãos em concha da corajosa e perspicaz miúda, ela soube que tinha chegado a hora de a soltar em frente às pálas do moinho. Nova função para a mesma construção, e chamar pelo vento para que levasse o pó mágico aos homens do continente que na sua grandeza se tinha esquecido do seu rebordo banhado pelo mar, como todas as ilhas.

Diz-se que os homens ganharam nessa época novo entendimento. Mas diz-se que às vezes o perdem, esquecendo-se de ver com os olhos e ouvir com os ouvidos. Seja como for, a Berlenguita vai ficando cada vez mais pequena e os ambientalistas culpam o aquecimento global, os geólogos os fenómenos naturais de desgaste do mar, os biólogos a introdução de novas espécies em ambientes não-hostis e sei lá que mais.

Eu, pessoalmente, não acredito em lendas e quando olho para as Berlengas nunca vi lá nenhum moinho. Mas já conheci gente de olhos brilhantes a quererem fazer coisas sem saber o quê... e tenho a sensação que seja o que for, será da mesma matéria que as lendas feitas histórias que provocam esse teu sorrir.

Colchão de Perdição - Parte I

O velho colchão de penas fora-lhes oferecido como presente de casamento, pelos avós maternos de Simão. Na altura, deslumbrados com a perspectiva de uma vida a dois, Simão e Teresa descuraram o facto de não se usarem, já, colchões sem molas. Mesmo que tivessem pensado nisso teriam chegado à conclusão de que não poderiam fazer uma tal desfeita aos avós de Simão que tão orgulhosos estavam de verem o seu neto dormir no exacto colchão que tinha pertencido aos seus falecidos pais.

Cedo o colchão começou a revelar as suas qualidades. Não era só a ondulação provocada pela distribuição heterogénea das plumas, que dava ao casal a estranha sensação de dormir num areal. Não era também, a concavidade natural que se formava no meio do colchão e que para ali empurrava e mantinha apriosionados, os corpos de Simão e Teresa. O pior de tudo era o circunstancialismo que impedia que um se mexesse sem perturbar o outro. Noite após noite Simão e Teresa dormiam colados, cara com cara, pele com pele, corpo com corpo.


Nos primeiros meses de casamento, apesar das noites mal dormidas, o casal compensava e substituia o sono traquilo por longas noites de paixão. Se um se mexia acordando o outro, a iminência do contacto fisíco, acabava por levá-los a fazer amor. Até chamavam ao colchão, em tom jocoso: "o indutor de sexo". As idas à casa-de banho, eram também bastante toleradas no princípio com um: "Claro amor! E eu lá ia deixar que a minha florzinha silvestre ficasse aflita uma noite inteira? Queres que vá contigo e te faça companhia, para não te sentires sozinha?" ou com um: "Querido? Estás a dormir? Se precisares de ir à casa-de-banho dizes-me não dizes?"...