quinta-feira, agosto 07, 2025

Sr Dr Francisco

 
Sempre impecavelmente arranjado, o Sr. Dr. Francisco até de pijama tinha porte de fidalgo. Daquelas coisas que nascem connosco, diria a sua mãe orgulhosa, sem lhe passar a mão pela cabeça. Tinha sido uma mãe distante, mas naquela altura era assim, se calhar ele tinha feito mal em ter dado tantos mimos aos filhos que agora o respeitavam menos. Onde é que ele se atreveria a falar com os seus pais da maneira que os seus filhos de vez em quando lhe respondiam! Mas também, antes isso do que os ter mandado para o colégio militar e eles terem passado o que ele passou. Não tinha sido uma adolescência fácil, mas tinha compensado: não fosse isso e não era hoje a pessoa que é: Vice-Presidente de uma empresa com mais de mil pessoas, a poucos anos da reforma, um percurso brilhante que só não foi melhor por ser um homem de princípios e nunca se ter metido em certos interesses mais duvidosos. Não se arrependia e, para ser sincero, o sucesso já se antevia no seu consistente percurso de aluno brilhante e perspicaz, calado e reservado, como os professores no colégio apreciavam.

Da infância na aldeia tinha recordações mais adocicadas, apesar do distanciamento físico dos pais, havia as memórias boas da dona Idalina, a criada a tempo inteiro lá de casa, que tinha sido mais mãe que a mãe dele. O Sr. Dr. Francisco fazia um sorriso quando se lembrava dela, a dona Idalina era daquelas pessoas que sempre tinha sido velha – pelo menos era o que ele achava quando era catraio. Escondia rebuçados nos bolsos grandes do avental, tinha sempre uma guloseima para o seu menino preferido, desalinhava-lhe os cabelos com festas mais ou menos desajeitadas e logo o mandava ir pentear-se outra vez antes que a sua mãe o visse. Tinha-lhe encoberto muitas aventuras, como quando o Sr. Dr. Francisco fugia com os gaiatos da aldeia para ir tirar os grilos das tocas fazendo xixi em cima delas; ou quando iam apanhar sapos na ribeira e chegavam a casa todos sujos. Para os outros miúdos não havia problemas, gentes do campo com pais igualmente sujos, mas para o Sr. Dr. Francisco tinha sido a dona Idalina que o tinha salvo de várias sovas e raspanetes. Assim que ela o via entrar pela cozinha, agarrava-o pelo colarinho e corria com ele para a casa de banho, dava-lhe um banho de água aquecida no fogão, trazia-lhe a roupa lavada e impecavelmente passada e ao jantar ninguém na sua mesa desconfiava de nada.

Que esteve o menino Francisco a fazer hoje? Perguntava a mãe, Estive a ler o livro de Baden Powell, respondia o menino Francisco, e logo deixava de ser tema da mais perguntas ou comentários.

Outros tempos, pensava, o mundo agora muda a uma velocidade vertiginosa, parar é andar para trás, ah mas seria tão bom às vezes poder andar para trás... Talvez por isso tivesse começado há coisa de 3 anos um novo negócio só dele, eram vinhas e mais vinhas, davam para engarrafar umas 40.000 garrafas de tinto, umas 20.000 de branco e umas 5.000 de espumante. Este ano não tinha sido bom, muita chuva e o vinho ficava menos saboroso, mas um enólogo de renome ajudava a manter o negócio no mercado. E o Sr. Dr. Francisco gostava de passear pelos hectares alinhados. A mulher tinha gozado e gozado, completamente contra, que raio de crise de meia-idade. Também lhe tinha pouco respeito é certo, mas lá se encarregava de ajudar a organizar e aparecer nos eventos em que abriam a quinta a festas bastante elitistas. Uns quantos enólogos de nomes antigos e uma mão cheia de novos ricos, as revistas de especialidade e uns quantos diretores amigos… enfim, o que tem que ser para garantir o nome à frente do consumidor. Os filhos é que nem apareciam, ás vezes ligavam quase sempre a pedir dinheiro. Como se as casas e os carros e as contas pagas não fossem suficientes, esta nova geração está de facto muito mal habituada, mas também não se podia queixar muito. Ambos lá tinham tirado os seus cursos – cursos de 4 anos tirados em 5 ou 6, e arranjado os seus trabalhos – com uma grande ajuda dele e dos seus contactos. E mais a mais, os anos que haviam passado fora tinham ajudado, lá nisso o Sr. Dr. Francisco tinha feito questão, a filha um ano em New York, o filho um ano em Londres. Para conhecerem outras culturas e outras formas de vida, e que não o acusassem (como a mulher tinha acusado) de ele estar a fazer o mesmo que os seus pais lhe tinham feito, aquilo lá tinha alguma coisa a ver com o colégio interno, então a idade era outra, as condições também, era mesmo falar do que não entendiam!... O Sr. Dr. Francisco não podia deixar de achar irónico, como toda a gente cá fora tinha tanto respeito por tudo o que ele dizia, mas dentro de casa era o que era, ninguém o ouvia.

terça-feira, agosto 05, 2025

Dona Dália

 A Dona Dália era filha de um jardineiro de província, claro, que outra explicação haveria para o seu nome floreado que lhe fechava tantas portas? Ou era o nome ou seriam o sotaque e as maneiras, lá porque tinha emigrado para a capital há mais de vinte anos, não significava que se tivesse conseguido integrar totalmente. Eternamente estranha numa cidade que chamava sua, a Dona Dália tinha vingado mais do que se teria permitido imaginar: profissional de sucesso em consultora de renome internacional, cada subida do seu chefe significava também uma subida sua. Por isso a Dona Dália era uma secretária empenhada que não se ficava em tratar dos compromissos profissionais – há já muito que o lembrava de ir cortar o cabelo, que lhe marcava o dentista e que lidava com as agências para lhe assegurar o merecido descanso das férias. Lá na empresa haviam muitas miúdas novas, de nariz empinado, armadas em arrogantes, que a tentavam destratar. Ah, mas a Dona Dália logo as punha no lugar, destratá-la a ela era ficar sem acesso ao seu chefe, eram demoras nas respostas dos e-mails, eram prazos a serem ultrapassados e urgências que ficavam para a última prioridade da semana. Não era preciso muito tempo para essas arrogantezinhas perceberem rapidamente o seu lugar, com a Dália ninguém se mete, avisava ela carregando nas sibilantes e entre-dentes, ameaças sussurradas que nem precisavam ser ouvidas para mais cedo ou mais tarde serem claramente entendidas. O marido de Dona Dália, um ex-segurança ferido em serviço – que lhe tinha caído um armário em cima de um pé e esmagado 3 dedos e vários ossos, deixando-o sem trabalhar e a receber da segurança social - era um bom marido. Arranjava o que havia para arranjar lá por casa e ainda se entretinha a fazer umas obras a sério: a última que ela o tinha conseguido convencer e que já estava em andamento era um deck de madeira no quintal. Ia ficar bonito, oh se ia, digno de estrela de televisão. O filho único ajudava, estava já com 16 anos mas era um bocadinho mandrião nos estudos. Estava mais ligado ao exemplo do pai e menos ao da mãe, a Dona Dália não entendia já que era ela a profissional orgulhosa e bem sucedida da sua família. Tem o feitiozinho do pai, pensava, mas o pai também se deu bem na vida, afinal de contas é trabalhador e nunca está parado, nem agora ele sossega, sempre a inventar coisas lá em casa, e olha que bem que corre, será que depois do deck o consigo convencer a fazer uma piscina? Gostava por isto de receber gente em casa, a Dona Dália, gente da sua terra que também estava emigrada em Lisboa sobretudo - esses é que apreciam! Os colegas da universidade não, desses não tinha ficado com grande ligação, afinal de contas tinham ainda hoje vidas bem diferentes. Eles é que não sabem o que é bom, sempre a gastarem dinheiro em coisas que o meu marido faz tão bem ou melhor e que não nos custa nem um quinto do que eles pagam! Mesmo as casas, pagar 3 vezes mais por uma casa no centro da cidade, com todos aqueles carros e a poluição, não não, aqui na Bobadela é que se está bem, tão perto da cidade mas é quase meio campo, eu é que sei fazer isto bem. Ás vezes, muito raramente mas ás vezes, a Dona Dália olhava para o chefe e pensava que afinal de contas ainda podia aspirar a um bocadinho mais. Sempre de banho tomado e fato impecavelmente passado, o chefe até podia ser uma boa aposta para ela… mas rapidamente afastava esses pensamentos da sua cabeça, especialmente quando estava a tratar-lhe das férias, ia para sítios tão esquisitos, como é que não voltava mais magro, o que seria que comeria lá por essas Ásias e mais de oito horas de voo, deus me livre, e ainda por cima aposto que nem consegue arranjar um cano entupido do lava-loiças, eu estou bem é como estou, férias na Comporta de roulotte é que é um luxo que pouca gente tem. E mais a mais, não via o chefe a falar com o pai, de flores de certeza que não entendia já para não falar de que não o via mesmo sentado na sala de estar lá da aldeia. Não não, assim é que eu estou bem, e continuava decidida a fazer tudo para não perder a vida boa que tinha. A profissional de sucesso da sua família.

sexta-feira, agosto 01, 2025

 Sr Tiago

Tocava o despertador às segundas-feiras e o Sr. Tiago não se demorava a sair da cama. Tomar banho e vestir um fato, fazer o nó da gravata depois de ligar a máquina do café, a mulher que se levantava mais tarde e ele que saía sem pressa nem atraso para mais uma semana de trabalho. Organizado, metódico, estóico. O carro era bom, marca alemã com mais espaço e potência do que o que seriam necessários, cor escura. O sr. Tiago era seguro e confiante, era daqueles que ocupava mais do que o seu lugar quando se sentava: pernas abertas, braços abertos, ligeiramente recostado nas cadeiras, tinha sempre algo a dizer, a acrescentar, a apontar ou a criticar. Filho mais velho do que chamariam nos estados unidos de “self made man”, a empresa do pai sempre esteve presente na sua vida. Em miúdo, foi neste recinto que aprendeu a patinar e a andar de bicicleta; a sua primeira mota estava em nome da empresa; parte dos seus verões haviam sido passados ora no armazém, ora na oficina e mais tarde no escritório. Nessa altura alguns dos empregados tratavam-no por “o menino”, mas isso fora lá atrás. Agora era Senhor Doutor, e ele nem tinha esse titulo universitário mas também não os corrigia. A empresa era de transportes - quem é que em menino tinha sonhado em ser o maior gestor de uma empresa de transportes? - e não sendo uma mega multinacional, tinha os seus 300 empregados e uns quantos estagiários ocasionais. Estava bem na vida, o Sr. Tiago, não fosse de vez em quando ter que engolir sapos do pai, mas também não era grande sacrifício e além disso o velho estava cada vez mais velho e portanto o sr. Tiago também ja lidava com ele de outra maneira. Estava bem na vida, o sr. Tiago, sem grandes sonhos nem paixões mas lá disso nunca tinha havido que a vida é dura e sonhar e desejar era para outros românticos. Já a sua mulher, de vez em quando punha-se com conversas lamechas, que os presentes deviam ser bem pensados, que podiam ir fazer uma viagem a África... África? Como se ele aguentasse 15 dias a comer porcarias mal cozinhadas, ou como se a empresa aguentasse 15 dias sem ele! Que paciência às vezes era preciso ter, ainda se ela tivesse razão de queixa da vida que levavam!... Não, isso de divagações e sonhos não era para ele, o sr. Tiago era de fazer o que tinha que ser feito - geria a empresa, geria a sua família, fazia-se respeitar pelos amigos. Ocasionalmente metia-se com as estagiárias, aventuras de curta duração e de quase sempre apenas uma incidência, ao domingo levava a mulher a almoçar fora, trocava de carro a cada 3 anos e acima de tudo nunca se entretinha com pensamentos sobre o que poderia ser diferente ou como gostaria que a sua vida fosse. Era como era e ele sabia bem fazer isto.

quinta-feira, julho 31, 2025

Dona Laura

Dona Laura sabia, porque sua mãe muito repetia, o que o seu nome significava: a vitoriosa, a triunfadora. Dona Laura ficava vaidosa quando sua mãe lhe escovava os lisos cabelos compridos. Ela, menina, inspirava de costas direitas, pronta a triunfar na vida. Quarenta anos depois, olhava para o espelho e fazia o mesmo movimento direito à procura da pose de triunfo. Sempre fora menina ajuizada, estudante média-para-o-boa, nunca tinha perdido um ano do curso de letras que escolhera. Casara com um colega da universidade - o seu segundo namorado da vida inteira - e foram viver para a terra dele, o que não era um problema porque estavam apenas a duas horas da sua. Aos fins-de-semana até dava para ir e voltar. Dava para ir e voltar agora, no princípio passavam lá o fim de semana inteiro mas ele tinha cada vez menos paciência para isso, da mesma maneira que tinha cada vez menos paciência para programas com ela. As visitas a casa a encurtar e as semanas entre elas a aumentar, mas que diferença fazia, afinal os pais dela tinham mais perto a irmã, estavam apoiados e confortados e tampouco lho cobravam. Já dona Laura sabia que tinha uma boa vida entre os dois salários e os poucos gastos, um trabalho confortável para a câmara municipal, o marido como braço direito na empresa de seu pai - sem grandes riscos, luxos ou aventuras mas estável e seguro, a assegurar o futuro. Para ser sincera, Dona Laura, a vitoriosa, gostaria se ás vezes fizessem outras coisas, sei lá, mais viagens, jantares ao som das próprias conversas em vez de ao som da televisão… um gesto de romantismo dele - mas que não fosse o de irem almoçar fora ao domingo, era sempre ao mesmo restaurante, isso ainda conta como romantismo? Ele dizia que sim - meio impaciente, sem a olhar nos olhos - o que queres agora ao fim de tantos anos juntos, e ela dizia para si mesma que o casamento é isto mesmo, que estou a ser exigente e irrealista, ele tem lá as preocupações dele e da empresa e além disso nós temos esta bonita história de 23 anos juntos… O mal são as comédias românticas que passam na televisão, que não sei porquê mas às vezes põem-me a pensar no Júlio, o meu primeiro namorado, que apanhava malvas no quintal da vizinha sempre que vinha ver de mim, o que será feito dele? Ah mas Dona Laura nem se atrevia a suspirar, depressa tentava acabar com estas divagações nostálgicas da sua cabeça, concluindo que decerto o Júlio está gordo e desarranjado, era vaidoso mas não tinha gosto nenhum, andará lá na sua vida, tanto faz, eu é que tenho que ir ao cabeleireiro, e na volta passar no supermercado para comprar café, a ver se não me esqueço do que o adjunto da câmara falou na sexta-feira passada... e assim seguia rapidamente para a sua rotina, Dona Laura, a vitoriosa, a triunfadora, que não sabia explicar esta sensação de vazio que de vez em quando a enchia.

sexta-feira, julho 11, 2025

Sr. Jacinto

 Nas rugas profundas da cara do Sr. Jacinto podiam antever-se as preocupações que lhe haviam moldado

a vida, as preocupações que lhe serviram de motivação para se levantar ao mesmo tempo do sol e sair

de casa dia após dia - de semana ou fim de semana - sempre a dar vazão a mais um quintal que

precisasse de ser ajeitado; a uma  sebe de ramos desalinhados que precisasse de ser endireitada; a uma

relva amarelada e com peladas que precisasse de ser acarinhada. Era assim o Sr. Jacinto, um trabalhador

empenhado e respeitado, que sabia mais de jardinagem que qualquer outro e assim havia indo

construíndo o seu caminho - mesmo quando outras empresas mais modernas começaram a aparecer. A

razão era simples e bonita: o Sr. Jacinto havia casado com a Maria, a rapariga mais delicada da rua e que

até despertou a paixão pré-adolescente do Sr. Dr. Francisco da Palma e Matos. Coisas de miúdos, é

certo,  mas também o foi o facto de que a Dona Maria não se tinha deslumbrado com o filho dos

senhores. Claro que os senhores, ao primeiro sinal das palpitações do filho mais velho o enviaram

apressadamente para um colégio na capital e Maria, sempre recatada e delicada, nem sequer se fora

despedir dele. Anos mais tarde, quando ela aceitou namorar com o Sr. Jacinto, este preocupou-se pois

sabia que lhe caberia a ele dar-lhe uma vida digna e com condições, que até lhe permitissem comprar

dois ou três lenços novos quando ela quisesse.

Quando casaram, o Sr. Jacinto já havia conseguido uma casinha asseada, na mesma rua em que tantas

vezes a seguira com o olhar quando a mãe de Maria a vinha chamar para o jantar. Logo no primeiro ano

de casados ela deu-lhe um belo rapagão de 3 kilos e tal, com choro tão forte como o de um bezerro. E o

Sr. Jacinto preocupou-se, que agora eram três e depois passaram a 4 e a seguir chegaram a 5, a mais

nova a sua alegria, tão parecida com a mãe que era. De físico, de personalidade, tinha maiores

ambições. Ora com a família a crescer, o Sr. Jacinto preocupava-se ainda mais e trabalhava mais,

justamente o suficiente para assegurar que os três filhos pudessem crescer, estudar e fazerem-se à vida,

nas mesmas condições e com o mesmo conforto que todos os outros de famílias mais abastadas. Ou

quase. Certo era que os três estavam na capital, só a mais nova se tinha licenciado, mas os três bem

empregado. O mais velho era eletricista, o do meio estava na construção civil, e ela trabalhava numa

grande empresa de estrangeiros. Falava línguas, vestia de negócios, andava sempre pintada e arranjada.

Os três tinham casado, já havia netos que vinham de vez em quando, mas apesar da família a crescer, a

casa ia ficando cada vez mais vazia. Especialmente depois da morte da Maria, os miúdos vinham ainda

menos, os netos iam crescendo longe do olhar do avô. E o Sr. Jacinto, que outrora trabalhava por

preocupações, agora tinha que explicar ás novas clientes que não, que não se ia reformar, que era

mesmo das flores que gostava e que portanto para o ano ainda estaria disponível. Como no ano

passado, e todos os outros antes desse.

segunda-feira, agosto 22, 2022

destroços

Lá fora o mundo arde, desenhando trilhos negros que assinalarão por anos os caminhos dos sopros emocionais de Zéfiro. Cá dentro o fogo é lento, carbonizando desejos e vontades que ficarão latejando em silêncio por uma vida inteira. Pelo que resta de uma vida que já foi inteira. O desnorte é enorme e a bússola rodopia furiosamente entre todos os pontos cardeais - quer o ambiente seja de festa, quer seja de dança, quer seja uma conversa apaziguada e até no silêncio do finalmente só. Não pára o desassossego, não diminui a velocidade. Talvez quando não reste verde na paisagem, a esperança possa passar de brasa laranja a cinzento pó. Se tudo for destroço, se a agulha perder o equilíbrio no eixo, se o magnetismo dos pólos mudar devido às temperaturas pós-incêndio - então os caminhos ficarão cobertos de cinza e a bússola acabará por se desintegrar, entregue a outro sopro de vento.




picture from here.

segunda-feira, setembro 06, 2021

neste momento

 Neste momento, algures no mundo, alguém põe o pé descalço na areia de uma qualquer praia e respira em direção ao horizonte.

Alguém troca a fralda suja de um bébé, enchendo-o de beijinhos sonoros na barriga,

alguém acaba de escolher finalmente que livro levar e prepara-se para ir para a caixa.

Não sei de estatísticas, mas talvez duas pessoas tenham acabado de fazer match no tinder,

alguém abre uma cerveja para pôr um ponto final num dia cansado,

alguém abre a porta do carro em jeito cavalheiramente sorridente sem dizer que já estamos atrasados para o jantar,

alguma mãe irritada deixa escapar um grito de zanga e a sua criança se põe em sentido, já devido há algumas horas,

um escritor que não se intitula assim olha para uma folha em branco no computador sem saber muito bem como começar enquanto um pastor conta as cabeças do rebanho para estar certo que não lhe falta nenhuma.

em algum lugar sem assistência haverá uma folha seca que se desloca pelo vento do pé da raiz-mãe para uns metros mais à frente, será abrigo de um qualquer insecto desconhecido por esta noite,

alguém olha pela janela e suspira por outro alguém que não está por perto,

uma criança aprende que se pedir um desejo à primeira estrela da noite, ele talvez se concretize. Agora só falta saber o que quer desejar.

quinta-feira, abril 22, 2021

Dona Léria

Dona Léria

trazia

na voz 

a calma de um lago primaveril.

Dona Léria

pestanejava 

com 

todo o tempo do mundo.

Um pestanejar

podia durar

todo um segundo.

Não guardava urgências - nem nas pregas da roupa, nem em lado algum.

Sacudia-as

com um respirar pausado,

afastava-as

com um manejar bailado.

Dona Léria embrulhava-se em tranquilidade, não tinha problemas com o silêncio - o que às vezes deixava as pessoas à volta confusas, desconcertadas. Que vinham com partes de histórias e voltavam totalmente desarrumadas. Dona Léria criava assim desarrumações pessoais, 

e gostava.

terça-feira, março 30, 2021

Shhh, deixa-te estar sossegado mais um bocado

Shhh, deixa-te estar sossegado mais um bocado,
deixa-te ficar nestas quatro paredes onde aprendeste a distinguir cada nova mancha,
onde aprendeste a ler as horas do dia nas danças dos raios e sombras na madeira do chão,
na tinta da parede,
sobre os móveis e plantas sobreviventes.

Deixa-te ficar sossegado mais um bocado,
deixa-te ficar nestas quatro paredes enquanto te comes um mundo virtual, apimentado por uma nova qualquer experiência culinária, a tentar que os dias saibam diferentes, a saber que os dias te sabem diferente.

O mundo, lá fora, parou. Parou por um momento só,
depois continuou vibrante mas sem ti. Não lhes fazemos falta nas manifestações,
nas tentativas de revoluções,
nas vozes irritadas contra os invisíveis,
nos disparos sobre Moçambique,
nos empurrões a um barco encalhado que afunda também uma economia. A global. A que já estava afundada mesmo.

Daqui a nada há-de ser diferente,
daqui a nada vamos para a rua dançar,
daqui a nada voltamos aos abraços,
aos brindes e conversas cruzadas.
Daqui a nada há uma vacina, ou duas ou três ou vinte, as que sobrarem de países mais ricos,
talvez venham cá parar e possa ser diferente. Do agora, do que foi.

Pudéssemos nós reinventar o que nunca se viu, uma vez mais, mas agora com as rédeas nas mãos. Será que podemos?

quinta-feira, janeiro 03, 2019

3 de Janeiro de 2019,
os primeiros três dias de um ano novo a estrear. De mais um ano a estrear, para já ainda tão parecido com o ano passado.
Faz hoje três anos que a avó morreu e ainda nunca escrevi sobre isso,
ainda não será hoje;
Hoje que está frio, hoje a quem falta uma hora para acabar.
Dão muito frio para esta semana, tanta coisa que podiam dar e dão frio, ah!, e também dão um eclipse lunar total. Está previsto atingir o seu auge algures pelas cinco da manhã; não creio que o vá ver, a vida moderna de trabalho não se suspende nos pequenos milagres da natureza e, pelo que me toca, este eclipse tem três anos de atraso.

segunda-feira, julho 23, 2018

Carta para um rapaz de 15 anos


Eles dizem,
“faz isto, faz aquilo, faz o outro”
E a gente,
A gente diz que sim,
A gente finge que sim,
A gente decide que talvez,
A gente pensa que não quer,
A gente faz finca-pé e diz que não. Cruzamos os braços e dizemos que não, levantamos o queixo e dizemos que não, perguntamos porquê, perguntamos porque não, ficamos com fogo no estômago e rangemos os dentes, mas porque raios tem que ser um tem mesmo que ser?

Depois, depois às vezes lembro-me do Homem-Aranha ou do Harry Potter,
Gosto mais deles do que do super-homem, também gosto do Batman, o Batman agarrou nele e treinou-se e decidiu quem queria ser e como o queria fazer e pumba, fez. Mas o tipo era rico e isso é sempre uma ajuda e nós não somos ricos, tudo o que conquistarmos vai-nos sair mais da pele e do pêlo e do suor e do esforço. Bem, o Batman tambem suou, bem mais do que o super-homem que não era rico mas desde que nasceu que era um menininho especial cheio de força e olhos laser e peito de aço. Cabrão.

Mas o Homem Aranha e o Harry Potter. O Homem Aranha e o Harry Potter andavam lá nas suas vidas mais ou menos infelizes, sem saberem o que fazer com eles nem com tudo o que lhes corria mal, tudo o que não gostavam, o que não queriam, o que não entendiam que tinha que ser. Depois... depois lá se foram apercebendo que tinham talentos – um desde nascença, o outro por acaso – mas tinham talentos, e podiam fazer coisas com eles. As coisas certas. À maneira deles. E foram descobrindo que as coisas que eles achavam que eram as certas nem sempre eram, que às vezes os “tem que ser” tinham razões que a razão deles desconhecia, que havia mais mundo à volta do mundo deles. E com isso foram aprendendo a domar as impaciências, e com isso foram aprendendo a lidar com as coisas, a aceitar outras. A confiar no que sabiam mas também no que não sabiam. A ouvir o que sentiam, como medida de avaliar o certo e o errado. Ao final do dia a gente sabe sempre o que está certo ou errado, cá dentro. E então, então só é preciso coragem e força – às vezes para fazer acontecer, outras vezes para aguentar. Já dizia o treinador do Rocky, não interessa quantas vezes te batem, interessa quantas vezes te levantas.

Tu... tu és um bocado Homem Aranha ou Harry Potter. Talvez não a trepar paredes nem a lançar avada kedavras mas a vida também não é um filme de super-heróis. Os teus poderes são outros e já se começam a manifestar e tu, tu agora estás a lidar com eles, mesmo que não saibas, e às vezes à custa de um ou outro encontrão numa parede de um prédio, de um ou outro feitiço lançado à pessoa errada, de vez em quando, para acertares depois mais tarde. Continua a fazer o melhor que podes com aquilo que tens. O melhor está aí para vir.


terça-feira, dezembro 12, 2017

Serviço público de Natal - que livro oferecer?

"Ah e tal, tenho que dar uma prenda de Natal a ______ e acho que um livro era uma boa prenda... só que não leio o suficiente para saber de um bom livro, se calhar não é boa ideia..." - É boa ideia sim senhora! Além de tu pareceres interessante, ainda dás a possibilidade a alguém de se tornar interessante! E não temas a escolha, a amiga Sú dá uma ajuda. Ora vamos lá, bons livros que andam ai e para quem:

 - ROSA MONTERO, A CARNE - Um livro que todas as mulheres acima dos 50 anos deviam ler. Não tem nada que saber, é mulher? Tem mais de 50 anos? Oferece-lhe este livro. Já agora, tu és mulher, com mais de 50 anos e não recebeste este livro no Natal? Vai comprá-lo.

 - PAUL AUSTER, 4321 - um livro para aquele tipo (ou tipa) que é cheio de curiosidade intelectual. Que gosta de pensar e puxar pela cabeça, que nunca pergunta que horas são mas que te pergunta o que andas a fazer na vida e quem queres ser.

 - MIGUEL REAL, O ÚLTIMO EUROPEU 2284 - um livro para aquele gaiato ou gaiata, a partir dos 15 / 16, desde que sejam "uma granda cabeça". Também é óptimo para aquele amigo ou amiga que está sempre a fazer prognósticos acerca da ditadura para onde estamos a caminhar. - RITA FERRO, ÉS MEU - um livro muito curioso, que a recomendação é ambígua. Serve para aquela mulher melodramática, que vive tudo intensamente mas serve também e muito bem para aquele homem que nunca acerta com o que a mulher quer.

 - PATRÍCIA REIS - A CONSTRUÇÃO DO VAZIO - indicado para aquela pessoa que lê bastante e gosta realmente de ler. Aquela pessoa que tem autores de eleição (especialmente se forem autores portugueses), aquela pessoa que gosta mesmo de um bom livro e tens medo de lhe oferecer um porque se calhar já o tem. Tem é que ter mais de de 23 anos, ok? É um livro que exige uma certa maturidade emocional e mesmo assim dói-nos um bocado, ao princípio. Até podia ser para mim mas eu já o li, aceito outros dela no entanto.

 - YUVAL NOAH HARARI, HOMO DEUS - para aquela pessoa que está sempre interessada em perceber o mundo e a vida, tudo o que nos rodeia e os factos e dados sobre isso. Aquela que te alerta sempre para uma coisa curiosa que ainda não tinhas pensado nisso.

 - COLSON WHITEHEAD, A ESTRADA SUBTERRÂNEA - para aquela pessoa que gosta de romances históricos ou de aventura, não mete reis e rainhas mas é um dois em um.

 - ISABELA FIGUEIREDO, A GORDA - para aquelas meninas-mulheres que são ou querem ser verdadeiramente livres, descomplexadas e donas da sua vida. É um livro muita bom, que mostra que a vida não tem que ser o plano dos outros.

 E, se até és uma pessoa que leu coisas boas este ano que passou, que livro recomendarias para quem?

PS - Serviço Público de Natal - done.

quarta-feira, junho 21, 2017

reflexões sobre as reações a Pedrógão Grande

As primeiras notícias sobre Pedrógão traziam já a incompreensibilidade do número de mortos e os dedos indicadores de meio mundo erguiam-se mais ou menos ao acaso. Nas primeiras horas foram contra os criminosos do fogo posto, depois contra os bombeiros, depois contra a proteção civil. Pelo menos foi assim que a minha timeline de facebook se organizou. As horas seguintes trouxeram números a aumentar, na mesma estrada, e o medo de que chegando a mais aldeias e casas dispersas poderiam aumentar ainda mais. Trouxeram também algumas respostas, que não foi fogo posto, que os bombeiros estão articulados e vêm do país inteiro e arredores, que a proteção civil fez tudo direitinho e continua a fazer. O presidente, o segundo do governo a chegar ao posto de comando, trouxe calma ao secretário de estado que já lá estava, ajudou com certeza a organizar, falou até ao telefone com pessoas que se recusavam a sair das suas casas. Ao mesmo tempo havia já quem lhe apontava o dedo, os abracinhos não chegam Sr. Presidente. Agora, finalmente, reuniu-se mais ou menos consenso sobre para onde apontar os indicadores. São os eucaliptos, é a falta de limpeza das matas, é o governo que não aplica bem a lei, é o governo anterior, é este. É tudo, é qualquer coisa, é o pânico e o desnorteio. Somos deuses, não nos podemos permitir que a culpa morra solteira porque tem que haver culpa, tem que haver coisas que se possam fazer melhor para garantir que nunca mais, nunca mais, nunca mais, algo de semelhantes contornos possa acontecer neste país. É a humanidade a evoluir, é Portugal a evoluir. As imagens, os cenários, o que se viu e ouviu, tudo coisas que vão muito para além daquilo que hoje em dia, o homem civilizado tem a capacidade de aguentar. Um horror mais próximo de um teatro de guerra do que de um país de primeiro mundo. Vem daí a urgência em apontar os dedos, em encontrar culpados, em criar uma sensação - falsa ou real - de que jamais algo semelhante se possa repetir. Ninguém, português ou residente em portugal, deveria sequer pensar naquele horror, quanto mais vivê-lo, quanto mais morrer-se-lhe assim. A tentativa de impedir que tal volte a acontecer não está errada, claro. O apontar de dedo, ligeiro e pronto, é pura reação de pânico e horror. E é assim que um país evoluiu, melhora, se torna mais eficaz. No entanto, o raciocínio por detrás que é feito tem na sua semente um control que não sei se é real. Causas naturais ou humanas, tanto faz. O governo, o país, nós, nós temos o poder de controlar tudo, de impedir tudo, de conseguir tudo, desde que aloquemos os recursos, a atenção e os dedos em riste para os problemas. Nós somos os novos deuses, que não sofremos flagelos. Cometemos erros que se tornam desastres, não existem desastres em si. Só a nossa forma de lidar com eles. É melhor não pensar, é melhor apontar o dedo e acusar alguém, algo, qualquer coisa. Tudo para nos fazer esquecer esta sensação de fragilidade. É que se ainda não somos deuses, vamos sê-los muito em breve. Temos a certeza, com todos os inadmissíveis que acusamos.

segunda-feira, abril 10, 2017

Entrelançava os sonhos nas pontas dos dedos, ia brincando com eles enquanto os traduzia também em palavras, sonhos, esperanças, expectativas. os olhos brilhantes, planos, vontades e desejos, tudo seguro nas pontas dos dedos, enrodilhados uns nos outros, encadeados no entusiasmo da voz. eu ouvia, ia acenando que sim, pouco era chamado a participar nos devaneios. na minha cabeça perguntava-me, como é possível chegar-se a esta idade com tanto sonho? mas não formulei a pergunta. iria matar metade deles, não é essa vontade de que as coisas aconteçam que deve ser morta. tentei ajudar, só sonhar não chega, o que estás a fazer para chegar a esses lugares todos? puro discurso institucional, pura psicologia de algibeira, um silêncio a sublinhar a falta da resposta, a menina dos seus olhos a transformar-se em dois pontos de interrogação. brincar de sonhar vale tanto quanto delinear objectivos, pensei, calei de novo, não era chamado a participar mas estava ali para assistir e para me lembrar que o que temos de mais bonito não tem que se poder traduzir em indicadores de produtividade.

quarta-feira, fevereiro 01, 2017

dia de folga

Dizia o que queria e o que não queria, há algum tempo já que era assim. Antes disso, antes desse tempo, não dizia nada, calava e guardava nos bolsos do casaco, segurava e escondia nos bolsos das calças, punha para dentro e guardava no bolso da barriga. Agora não, e nem sabia explicar quando tinha sido o clique da mudança, se é que tinha havido um. Provavelmente não tinha havido nenhum, tinha lido algures que estas coisas são gra-du-ais, são de-va-ga-ri-nho, fazem-se como uma menina se faz mulher ou um rapaz se faz homem: sem se aperceber, sem se dar conta, sem querer e até sem crer. Quando se olham, já o são mas é o mundo que os vê que sabe disso, eles não, olham-se para dentro e não se vêem homem e mulher, olham-se para fora e ficam sem saber onde pôr os braços - se esticados ao lado do corpo, se nos bolsos, a tocarem nas coisas que calaram. Era por isso que às vezes lhe entrava esta raiva, não tinha pedido isto, não tinha querido nada disto, não tinha sonhado nada disto e agora tinha coisas que o mundo achava que ela tinha que fazer. E como as fazer. Comportadamente. Educadamente. Polidamente. Nesses dias apetecia-lhe gritar com o mundo e com qualquer pessoa que se lhe aparecesse à frente, nesses dias apetecia-lhe agarrar em tudo o que tinha guardado nos bolsos e aventá-los com força às cabeças que se lhe aparecessem à frente, mas não podia. Já podia dizer o que queria e o que não queria, mas não podia andar por aí a escorraçar raivas do corpo. O mundo não é um lugar de raivas, não pode ser um lugar de raivas. Raivas geram raivas e não se pode estar vivo sem se ter a noção do impacto que temos. Do quanto mexemos na vida dos outros, do quanto contagiamos os outros - com gripes, com raivas, com espirros, com sorrisos. Na maior parte desses dias - os agressivos e os de espirros, não os sorridentes - o melhor que há a fazer é esconder-se dentro de quatro paredes, afinal de contas uma raiva ocasional não é diferente de uma gripe, pensou, e ligou para o trabalho a dizer que hoje não podia ir contagiar pessoas.

terça-feira, junho 07, 2016

O Rui e os Dias*


Ele era boa pessoa, 
fazia os updates automáticos quando o tablet pedia, removia sempre o software em segurança, tinha uma conta poupança onde punha re-ligio-sa-men-te todos os meses uns bons 50 euros. Pedia recibos nos cafés, ia votar sempre que era preciso - desde que não estivesse a chover muito ou se as votações calhassem em período de férias, claro. Há muito que tinha deixado de discutir política e mesmo futebol discutia "com jeitinho", isto é, sem fazer muito alarido. Vá, uma laracha ou outra, um ou outro gozo com os amigos do clube rival, 
mas eles, 
eles acabavam sempre por ir buscar o campeonato de há 5 anos, ou outro qualquer anterior, e mais datas e nomes de jogadores que o Rui nem se lembrava. Nessas alturas, encolhia os ombros com meio sorriso e largava a conversa.

Estava inscrito num ginásio, um dia destes havia de voltar a começar a ir; quando se lembrava em algumas manhãs, até bebia um copo de água de um trago - tinha lido que fazia bem ao corpo, não custava tentar.
Gostava pouco de mudanças - da última vez que tinha sido obrigado a mudar de casa, durante um ano inteiro ia, de vez em quando, parar à porta do prédio antigo. Só quando a chave não funcionava na entrada cá de baixo é que se lembrava que já não morava ali e arrepiava caminho para a casa certa. "Que tontice" pensava, com um breve abanar de cabeça mas sem mais julgamento do que esses 3 segundos que lhe durava o pensamento. Às vezes ia jantar fora, normalmente com a equipa do trabalho, e depois um copo ao bairro alto. Reparava nas miúdas e nas mais graúdas que por lá rondavam mas era parco a fazer conversa. Já não ia para novo e as aventuras de uma noite que tivera eram mais que suficientes para se gabar a quem o quisesse ouvir.

Hoje em dia, nessas aventuras, até o aborrecia um bocado a manhã seguinte: roupa fora do sítio e lençóis com restos de maquilhagem. E ter que arrumar a casa e lavar os lençóis mesmo que não fosse dia disso, não, já tinha outra idade, já tinha outras prioridades, pensava para si mesmo. Além disso, aquela nova colega do escritório... ele achava que havia ali uma química. Nova - que já não era bem nova - fazia parte da outra equipa vai para dois anos; nunca tinham propriamente feito nada fora das responsabilidades laborais, nem trocado emails ou mensagens sobre outros temas além dos que lhes eram directamente temas profissionais. Mas às vezes, antes ou depois de uma reunião, ela fazia um bocadinho de conversa sobre o fim de semana seguinte e por duas vezes, quando ela passou por ele a caminho da impressora, lhe pôs a mão no ombro. Não precisava mais espaço para passar, mas mesmo assim pôs. Havia ali uma química, ele sabia, mas não que fosse de fazer algo por isso. As coisas haveriam de acontecer naturalmente, se tivessem que acontecer. E enquanto aconteciam ou não, acontecia a vida a escorregar por entre os dias mais ou menos organizados. Se lhe perguntassem se era feliz diria que sim, vá, normalmente feliz, afinal de contas que razão tinha para ser infeliz? Nenhuma, portando deveria ser feliz, sim.

*publicado em primeira mao aqui: https://quemcontaumconto.pt/o-rui-e-os-dias 

quinta-feira, junho 02, 2016

Insónia com reflexos

Alguém passa na rua, passos apressados, está um frio que se entranha. São 02:17 da manhã e a qualquer hora neste bairro há sempre alguém que chega ou vai - os silêncios da noite são intervalos nas histórias das pessoas que não conhecemos – e está visto que não vou mesmo conseguir dormir. Levanto-me da cama, amanhã o dia custará mais mas pensar nisso costuma apenas tornar a noite ainda mais longa. Acendo um cigarro de frente para ti, o intervalo nas histórias das pessoas que não conhecemos faz sentir que o bairro se deixou suspender, talvez fora do mundo, e aqui dentro o que vejo é apenas tanta interrogação no lado de dentro do teu olhar.
Tão longe e distante, criou-se tanto espaço entre nós. 

Na minha cabeça há muito que as incertezas se divertem a estorvar os outros pensamentos, queria-te pedir para me levares de volta a quando éramos mais fortes, a quando olhávamos as dificuldades com um sorriso trocista e segurávamos a respiração num folêgo antes de arregaçar as mangas, como quem mergulha de muito alto. Olho as tuas sobrancelhas, olho o teu nariz, olho os teus lábios. Conheço-os de cor, se soubesse desenhar poderia desenhá-los de memória e no entanto enquanto os olho agora, não tenho sequer a mínima sensação de familiaridade. 
Estás diferente. 
Estamos diferentes. 
Suspiro fundo, não tenho a certeza que possamos voltar ao que fomos sabes? E vejo que no teu olhar também há dor, não sei como fazer para voltarmos a ter a coragem que tínhamos, e vejo que os teus lábios também se contraem de tristeza, não sei como havemos de fazer... na rua passa um carro - há sempre alguém que chega ou vai - passo a mão pela franja desalinhada, suspiro fundo. 

Às vezes há que desistir e isto nem sequer são horas. Olho-me uma vez mais no espelho e penso para comigo que pode ser que talvez um dia me encontre.

terça-feira, abril 26, 2016

weather report

*perdoem-me a falta de acentos e cedilhas, diz que neste teclado num teim assim que olhem, paciencia...


Diziam que vinha para a chuva e para o cinzento mas (afinal) tinha vindo era para os intervalos (intercalados), como por exemplo hoje de manha (logo cedo). A manha ia ensolarada (mas fria) e depois houve (assim de repente) uma pausa (pequenina) de chuva torrencial (como se tivessem aberto mangueiras). Logo depois (assim seguidinho) voltou o sol e manteve-se (pelo menos meia hora!) ate ficar cinzento (mas menos frio). 
E eh assim (eh mesmo) que se vive a Primavera (aos solucos) nesta ilha.

Era so isto (era mesmo).