terça-feira, dezembro 14, 2010

D. Constância

D. Constância viva feliz e tranquila, na casa ao lado da casa onde nascera, há 56 anos atrás.

Usava e abusava das saias pelo joelho - se gostava de um modelo, comprava os que houvesse de cores diferentes. Ou iguais, se gostava mesmo-mesmo. E não era só com as saias, era também com os casacos, camisas e sapatos.

Todos os dias saía de casa as 7h28 da manhã. Passava pela pastelaria e dizia "Bom Dia", sem ter que fazer nenhum pedido. Um saco com 2 pãezinhos integrais lhe era estendido, ao mesmo tempo que um café curto em chávena fria. 2 pãezinhos integrais, iguais ao outro que tinha tomado esta manhã ao pequeno-almoço, levado no dia anterior - um para o lanche do próprio dia, um para o pequeno-almoço do dia seguinte. O do lanche com fiambre, o do pequeno-almoço com queijo.

D. Constância fazia dos hábitos e rotinas a sua personalidade. Cortava a margarina sempre a direito, barrava a manteiga sempre do mesmo lado. Antes de sair de casa, a volta era sempre a mesma: entrar no quarto e ver se a janela estava fechada, passar na cozinha e ver se havia louça suja fora do lava-loiças, passar na sala e ver se tinha desligado a televisão, apanhar as chaves e sair. Em mais de 50 anos não se lembrava da última vez que tinha fechado a janela do quarto, arrumado loiça ou desligado algo na sala nesta volta antes de sair. Mas continuava a fazê-la, pelo sim pelo não, porque era assim que saía de casa.

Tinha outras manias, arrumava os livros por ordem de alturas, guardava todas as caixas e caixinhas que lhe vinham parar às mãos. Para o caso de um dia precisar delas, e tinha um armazém de caixas vazias, que não eram precisas, debaixo da cama.

Adormecia sempre na mesma posição e acordava sempre da mesma maneira.

Habituou-se aos mesmos caminhos, aos dias repetidos, às frases iguais. E habituou-se também às mesmas palavras, as mesmas terminologias - reduziu o seu mundo de propósito e reduziu o seu pensamento na consequência.

Vivia tranquila, D. Constância, mas houve um dia que na sua cabeça se começou a desenvolver uma terrível patologia. Alzheimer, mal degenerativo de consequências nefastas. Padrões repetitivos, perdas de memória... mas D. Constância não deu por isso, nem ninguém das suas lides. Morreu com a doença por diagnosticar, nos dias iguais, frases habituais e caminhos repetidos.

2 comentários:

Tite disse...

Vim cá através da Dina. Fiquei curiosa quando li que o post dela era inspirador.
Caiu-me a cara.
Então quem tem manias desta natureza pode não dar indícios de sofrer da doença de Alzheimer?
Vou já desenvolver as minhas manias mais profundas, nomeadamente o caminho para o café e o sítio onde costumo arrumar o caro. Vou preocupar-me em escolher um local pouco procurado para garantir parqueamento mesmo com a doença para ninguém dar conta.
NEM EU MESMA! -;)))

Desculpa o abuso, sim?

taparuere disse...

Bem vinda Tite, n é abuso nenhum :)

n garanto a cientificidade nem verdade da teoria, mas se o alzheimer se define (apenas em parte) pela repetição de comportamentos em padrões, poderia ser verdade. O passado enquanto recordação é que deixaria de existir, passando a haver um tempo único, repetido à exaustão...

mas e vai daí, são divagações minhas, n tenho qq suporte médico nem conhecimento suficiente. e claro, algumas manias são boas, mas demais n deixa de ser reduzir o mundo.. digo eu, mais uma vez, sem qq suporte mais fidedigno do conclusões minhas :p