segunda-feira, dezembro 20, 2010

De um mal-me-quer para o mundo

Meu amor,

Escrevo-te aqui de Lisboa para te dar uma notícia grave: o Inverno chegou.
As pessoas andam de cara feia e ombros encolhidos, a tentar proteger-se do frio e da chuva. Os dias amanhecem sem sol e o tejo já se cobriu daquela cor cinzenta escura de quem não dá cavaco a ninguém.

À minha volta, os outros mal-me-queres encolhem-se em protestos. Nunca percebi isto de protestar encolhido, entre-dentes. Acho que têm medo, mas não sei do quê. Acusam-me de falta de prudência ou juízo, mas acho que eles tem medo das histórias que se inventam sozinhos.

Daqui de onde estou, continuo a esticar-me em direcção ao céu. Nem sempre é fácil, mas também não é difícil. Conheço o sabor da chuva, já. E das solas de sapatos. Eles não, e apontam-me as marcas que vou ganhando. Não serei o mal-me-quer mais bonito da primavera, não sei se chego à primavera.

Tu sabes, nunca foi à primavera que quis chegar. Foi sempre ao ponto mais alto da mais alta montanha, ao fundo mais negro do buraco mais escuro.

O outro dia conheci uma mulher que era esposa, logo por detrás de ser mãe e antes de ser meio casal. Saiu à rua com as pernas de trazer por casa e os olhos cheios daquela solidão que se entranha nos ossos. Trazia um miúdo pela mão e a falta de si pela outra. Não estou certo que ela saiba da sua existência. Nem da sua inexistência. Talvez também se tenha inventado medos, antes de se coser com as linhas das expectativas alheias. Não sei se ela se acusa de ter escolhido o caminho mais fácil, sem saber que entrou no labirinto mais difícil. Ou se se congratula por ter conseguido cumprir o plano que alguém planeou para ela.

Às vezes acho que o mundo anda trocado. Mas depois aparece um daqueles dias de inverno com sol e esqueço-me disso.

Acho que amanhã vou ter contigo. Os outros mal-me-queres desta calçada não só não querem vir comigo, como já me disseram que não podia. Porque nunca nenhum tinha levantado as suas raízes, porque temos folhas e não asas. Eu ouvi-os, mas não os percebi. De resto, estavam outra vez a protestar encolhidos.

Pelas minhas contas, devo chegar à hora de jantar. Mas não tenhas trabalho a preparar nada de especial, se me arrancares as folhas uma por uma é suficiente. E prometo que a que vai sobrar, será um bem-me-quer.

1 comentário:

jf disse...

já diz o géninho:

"Poupar o coração
é permitir à morte
coroar-se de alegria."

mas nda q n soubesses já, pois.