- Não é na racionalidade que encontras as verdades. Essa é que é a grande falácia do nosso tempo - a sociedade valoriza a objectividade, a racionalidade, o equilíbrio... já viste como andamos todos tão à procura do equilíbrio para "estarmos bem"?
Sentiu o chão fugir-lhe dos pés quando reconheceu o seu perfil. Deixou de haver tempo, espaço, paredes, terra, ar. Fora dos lugares, tornou-se uma trepadeira fragilizada por alguma tormenta, em desespero para não se deixar cair, a usar de toda a sua força daninha para sobreviver. Sem fôlego, sem respiração, parado sem uma pausa para descansar dessa quietude.
- Ah, o realismo, o racionalismo, o figurativismo até!.. o raciocínio lógico-dedutivo, sabes qual é o mal? É que quando as coisas entram na nossa lógica, a gente acha que são verdade. Encaixamos os "factos" na "lógica", para lhe conferir significados que compreendemos. E depois diz-se, "isto faz-me sentido". Como se a verdade tivesse que fazer sentido na nossa lógica. Ora, a haver uma "verdade" qualquer, existe fora de nós, existe fora das nossas convenções - é isso que criamos, convenções, e depois assumimos que são verdade. Mas são inventadas, como qualquer história de embalar ou lenda, para justificar algo e torná-lo compreensível para nós. Não te parece arrogante, que só aquilo que entra na nossa lógica possa ser verdade?
Sabia de cor os seus movimentos há já algum tempo. Conhecia a forma como afastava o cabelo, o trejeito das ondas que ele fazia quando ela soltava risos ou inclinava a cabeça naquele seu jeito típico. Conhecia-lhe a dança das mãos, o modo como davam um terço de volta e voltavam à posição inicial, a forma como o indicador e o dedo do meio se agitavam ligeiramente em assuntos mais problemáticos, o encosto do polegar ao anel do outro dedo em momentos mais distraídos. Sentia-se implodir por dentro cada vez que ela passava os 4 dedos pela testa, por dentro do cabelo, afastando-o da cara e abrindo mais os olhos a seguir. Sentia-se explodir por fora quando esses dois olhos o fitavam de frente. Que falta de noção, criticava-se, sempre que se apanhava a tremelicar por isso. Que estupidez, criticava-se, que agora com esta idade é que me havia de dar para isto. Que tenho que me controlar, convencia-se, sem conseguir desviar o olhar.
- Portanto, tenho a dizer-te, não é pelo raciocínio que vamos encontrar verdades. Não é. As verdades humanas, pelo menos. As científicas, vá, vamos descobrindo umas coisas na forma de como as coisas funcionam, mas também nunca será pelo método científico que descobriremos o porquê das coisas funcionarem. Isso pertence a outro reino, um sítio onde te garanto que não vai ser pela lógica que se entra. Por isso é que os sofistas foram o que foram, o poder argumentativo mais importante que a verdade intrínseca. A lógica, apesar de tudo, não deixa de ser um sofismo. Menos simplista, mas um sofismo. A gente anda a procurar a razão com a ferramenta errada - a razão. Já viste a ironia?
Queria tocar-lhe. Ás vezes acontecia, casualmente. Um encosto de ombro, um toque rápido na mão, um beijinho de "olá tudo bem". E ele ficava com aquele arrepio na pele, com aquela coisa agarrada à garganta, a tentar manter a casualidade da coisa, a tentar aguentar o impacto do terramoto interno que lhe varria o estomago, o baixo ventre e as virilhas. Queria agarrá-la com as duas mãos, segurá-la, abraçá-la, senti-la. Queria agarrar também todos esses impulsos, manietá-los, amordaçá-los, impedir de denunciar as suas vontades tão óbvias quanto despropositadas.
- E, se não é pela razão, então tem que ser pela emoção. Sabes que pela emoção também se aprende. Afinal de contas, nós somos seres sensitivos. Animais biológicos, condicionados pelos limites fisicos e hormonais da nossa percepção. Mas se calhar não é bem limitados, é mais libertos pelos limites fisicos e hormonais dos nossos sentidos. São eles que são a porta de entrada, mas as emoções, essas nascem cá de dentro, da reacção ao estímulo. Se nos conseguirmos libertar da raciocinalidade para encontrar uma forma mais "natural" de sentir, então estamos mais perto de alguma verdade. Mas não, continuamos a querer as razões, as causas, as análises, os equilibrios. Isso é que nos lixa tudo, isso é que nos afasta de "percebermos" as coisas. "Percebermos", assim, entre aspas, porque não é perceber-perceber com a cabeça, é perceber-perceber com os sentimentos. Percebes?
Ela olhou na direcção dele. E sorriu-lhe, inconsequente. E ele, desastrado, fez um esgar de volta a pensar que tinha que lá ir, que teria que lhe falar e não sabia de quê, não sabia como. Queria agarrá-la mas agora só queria fugir-lhe e tinha que lá ir dizer olá. Casualmente. E ela a falar com outros, e ela a sorrir-lhe, e as mãos dela na dança que ele lhe sabia, e o cabelo dela com os trejeitos que ele reconhecia e o cheiro dela, que se lhe iria colar ao nariz, aos olhos, à garganta, à noite e ao sono que não haveria de vir. Mas não podia dar parte fraca, não podia nunca denunciar-se, não iria nunca denunciar-se. Como é que faziam as pessoas para se falarem? Ah, já se lembrou. Coragem, são 30 segundos, 30 segundos não são nada, 30 segundos são mais do que 10 eternidades juntas.
- A gente tem que se deixar ir. O mal é que não deixamos. Sempre a planear. Sempre a analisar. Sempre a querer saber porquê e a dar justificações para o que sentimos. Tu, vai por mim, quando tiveres a rebentar nas mãos uma emoção qualquer muito forte, deixa-a rebentar toda até te arrancar as unhas. Seja boa ou má. Como diz o nandinho, sentir tudo de todas as maneiras. Vais ver que aí vais ter mais noção das coisas como elas são. Mesmo quando não fizerem sentido. Ou especialmente quando não fizerem sentido. Nunca fazem mesmo.
- É... é isso, é... quer dizer, não sei... equilíbrio é bom, ajuda um gajo a andar mais... equilibrado. epah, espera aí, vou falar a uma amiga, já volto.